O filósofo da Universidade Tufts, Daniel Dennett (foto), considera que, longe de ser um evento do sobrenatural, as religiões devem ser vistas como fenômenos naturais – e como tais devem ser estudadas pela ciência.

Formigas, quando infectadas por um parasita que toma conta de seu cérebro, passam a ter uma atitude estranha. Elas ficam subindo por folhas de capim até alcançarem o ponto mais alto, quando então caem e recomeçam a subida. A ação não tem utilidade nenhuma para a formiga, mas tem toda serventia para o parasita, que precisa entrar no estômago de uma vaca para completar seu ciclo reprodutivo. Assim, ele dirige o comportamento da formiga para uma situação que o beneficie.

Ratos às vezes apresentam um comportamento semelhante, correndo no meio da rua em vez de se movimentar pelos cantos – como manda sua natureza – e acabam abocanhados por gatos justamente por que estão tomados por vermes que dependem do aparelho digestivo dos felinos para se reproduzirem.

Os parasitas manipuladores são bem conhecidos por biólogos, mas foram usados por um outro tipo de cientista para defender uma tese. Aos 64 anos, o filósofo americano Daniel Dennett, da Universidade Tufts, nos Estados Unidos, usa a historinha na abertura de seu novo livro – Quebrando o Encanto (Ed. Globo; 456 págs.; R$ 39) – lançado no final do ano passado no Brasil, para questionar: será que com as pessoas acontece algo assim? Em seguida dá a resposta: “Sim. Com grande freqüência encontramos seres humanos que deixam de lado seus interesses pessoais, sua saúde, suas oportunidades de terem filhos e dedicam a vida inteira a promover uma idéia que se fixou em seus cérebros.”

A intenção de Dennett é mostrar que a religião às vezes desempenha exatamente esse papel. Ele considera que, longe de ser um evento do sobrenatural, as religiões devem ser vistas como fenômenos naturais – e como tais devem ser estudadas pela ciência. O filósofo gasta boa parte do livro, aliás, justificando por que é necessário investigar sua função. “As grandes idéias da religião têm nos mantido enfeitiçados há milhares de anos. (…) O encanto que deve ser quebrado é o tabu contra uma pesquisa direta, científica e sem obstáculos dos segredos da religião.” Dennett explicou sua teoria.

Afinal, para que serve a religião?
Hoje ela tem muitos usos, claro. Mas nas suas versões primitivas, quando era “selvagem” antes de ser “domesticada”, não tinha uso algum. Em princípio, elas eram apenas replicadores culturais selvagens, movendo-se entre hospedeiros, prosperando às custas de seus competidores.

Essa é a explicação da “teoria da mente”, que sugere que em vez de termos um gene de Deus, temos “memes” de Deus. Como é isso?
Nós somos dotados, pela evolução genética, de um mecanismo de detecção de agentes no ambiente. Quando ele dá um alarme falso – criando a alucinação de um agente que não existe (o barulho no escuro é considerado como demônios ou anjos, por exemplo) -, isso pode povoar nossas mentes com seres imaginários, que disputam nossa atenção (por espaço e tempo de repetição em nosso cérebro). As idéias (memes) mais inesquecíveis são as mais repetitivas. Elas descendem das alucinações originais – e podem ser passadas adiante, muitas delas modificadas, para nossa prole e vizinhos, pela comunicação. Acredito que foi nessa detecção errada que surgiram as primeiras divindades. Os deuses do politeísmo eram apenas invenções da imaginação fértil de pessoas em situações de stress. E os deuses do monoteísmo de hoje são os descendentes que sobreviveram desses antigos memes.

Podemos então dizer que a religião tem um valor evolutivo?
Essa é uma boa questão, que ninguém ainda sabe como responder. Pode ser que a resposta seja “valor nenhum”. As pessoas freqüentemente cometem o erro de admitir que, já que toda forma conhecida de sociedade humana teve alguma forma de religião – e que portanto a religião é universal e cultural -, ela deve ser boa para nós. Mas isso não serve de modelo. Cada grupo humano já estudado também teve o resfriado comum. Para que isso serve? Nada. Ele é bom em se reproduzir às custas humanas, e isso é tudo que precisa ser para que continue existindo. Mas pode ser que as religiões sejam, ou possam ser (sob várias circunstâncias), muito valiosas para nós. A única maneira de confirmar qualquer hipótese desse tipo é ser neutro desde o princípio e examinar as provas.

O senhor defende que devemos ver as religiões como um fenômeno natural. Qual é a diferença?
Quando alguém deixa de lado a presunção de que a religião é sobrenatural, assume o fardo de explicar por que um fenômeno tão custoso como a religião emergiu e persistiu. Nada assim pode sobreviver no mundo natural sem “se pagar”. E a única maneira pela qual esse custo pode ser subscrito é com a replicação diferencial (assim como do ponto de vista genético, cópias com variações “melhores” seguem adiante na seleção natural). Se todas as tentativas de explicar essas extravagâncias falharem, então nos restará a hipótese de que elas são milagrosas, além do natural.

A quem o sr. dirige esse argumento? Para os fiéis é provável que tenha pouco impacto, visto que eles consideram que Deus não segue as regras que regem o mundo.
De fato as pessoas mais devotas mantêm essa convicção, mas elas são – como todo mundo que não é tolo – observadoras aguçadas do mundo natural. Há uma tensão na mente delas. Se eu puder torná-las curiosas sobre qual seria a explicação causal de alguns aspectos desconcertantes das religiões, elas podem sentir vontade de remover as fronteiras entre essas duas porções de sua mente, empurrando mais maravilhas para dentro do reino do mundo natural. O Céu costumava ser visto como algo acima do firmamento. A astronomia e a cosmologia varreram o Céu para fora do céu. Não vemos mais esquizofrenia e epilepsia como possessão demoníaca.

Mas será que a tentativa de tirar Deus das pessoas não pode causar mais intolerância e confusão do que realmente um bem?
Isso é difícil de julgar. Eu admito que há um risco de que as minhas investigações possam tornar os problemas sociais atuais piores. Mas há inúmeros sinais que sugerem que os dogmas religiosos estão isentos de um criticismo racional, e isso é tão perigoso que temos de correr os riscos. Todos parecem concordar que devemos tentar eliminar os excessos tóxicos encontrados em todas as religiões. Mas, para isso, precisamos estudar todo o âmbito do assunto, assim como médicos precisam entender como corpos saudáveis funcionam antes que possam atacar doenças efetivamente. Crentes que se recusam a examinar suas crenças (e as explicações para elas) são como pessoas que se recusam a ver um médico quando suspeitam ter câncer por medo do que podem ouvir. Em ambos os casos a pessoa estará melhor buscando a descoberta, já que há três possibilidades: não há nada errado com ela (ou suas crenças), e ela pode parar de se preocupar; há alguma coisa errada, mas pode ser resolvida com uma intervenção oportuna. Ou realmente há alguma coisa fatalmente errada, e não há nada que se possa fazer. No terceiro caso, talvez a ignorância seja uma bênção, mas acho que o medo do conhecimento é, em si, a causa principal de sofrimento.

Qual é a sua intenção em “quebrar o encanto” das religiões?
Eu quero quebrar o encanto do hiper-respeito que isenta as religiões do devido exame minucioso. Eu sou genuinamente agnóstico sobre se o mundo seria melhor sem religião alguma. Eu acho que é muito mais provável que nós consigamos desenvolver meios de encorajar as religiões a evoluírem para instituições mais claramente benignas. As religiões se desenvolveram mais nos últimos 200 anos que nos últimos 2 mil anos, e não vejo sinal de diminuição do ritmo de mudança. Quem sabe como ficarão as religiões daqui a 50 anos? Talvez elas sejam todas capazes de se reformar e se tornar instituições humanas claramente saudáveis. Algumas religiões (ou seria melhor chamá-las de descendentes de religiões?) já fizeram isso. Vejo nos EUA algumas congregações judaicas muito liberais desempenhando esse papel; muitos integrantes as apóiam entusiasticamente, participando de bar mitzvah e bat mitzvah e cerimônias semanais nas sinagogas, mas deixam bem claro que as pessoas não são obrigadas a acreditar em Deus – ou dizer que acreditam – para ser um membro de boa reputação.

Fonte: Estadão

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