Uma nova lei baixada pelo presidente Hamid Karzai, no Afeganistão, exige que as mulheres xiitas peçam aos maridos permissão para sair de casa, e as obriga a manter relações sexuais. O Ocidente está indignado, e os políticos alemães estão cogitando aplicar restrições ao envio de ajudas para o desenvolvimento do país.

Foi só recentemente que o presidente afegão Hamid Karzai assinou a nova lei referente às famílias xiitas no Afeganistão. Mas não demorou muito para que uma onda de protestos varresse Cabul.

Ativistas dos direitos humanos dizem que a nova lei concede às mulheres ainda menos direitos do que elas tinham sob o islamita Taleban. E, no Ocidente, um número cada vez maior de pessoas começa a balançar a cabeça em sinal de incredulidade. Os Estados Unidos e o Canadá, particularmente, têm exercido pressões sobre Karzai devido à lei, e outros países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) estão seguindo esse exemplo.

Apesar da intensidade da frustração, a notícia da aprovação da nova lei em Cabul demorou a chegar ao Ocidente. O jornal “The Guardian” publicou uma primeira matéria a partir da capital afegã sobre a lei no início desta semana, com o título “Pior do que o Taleban”. Mas o jornal só teve acesso a trechos do texto da legislação. Agora, o restante dela foi divulgado. A “Spiegel Online” obteve o texto integral, e ele é ainda pior do que os relatos iniciais pareciam indicar.

“Desejos sexuais do marido”

Especialmente chocante para os observadores ocidentais é aquela parte da lei que diz respeito à vida sexual dos xiitas. A constituição afegã permite que os xiitas, que representam de 10% a 20% da população, façam a sua própria lei familiar baseada nas tradições legais. Mas a nova legislação é particularmente restritiva. O Artigo 132, por exemplo, preconiza: “A mulher tem a obrigação de responder positivamente aos desejos sexuais do marido”. Além do mais, se o marido não estiver viajando ou doente, a mulher é obrigada a manter relações sexuais com ele pelo menos uma vez a cada quatro noites. A única exceção é no caso de a mulher estar doente.

O Artigo 133 é tão problemático quanto o anterior. “O marido pode impedir a mulher de realizar qualquer ato desnecessário”, diz o texto. A lei exige ainda que a mulher obtenha a permissão do marido para sair de casa, exceto em casos de emergência. Além disso, a idade legal para o casamento das mulheres xiitas foi baixada de 18 para 16 anos.

O momento da aprovação dessa lei dificilmente poderia ter sido pior. Com os líderes dos países membros da Otan reunidos em Estrasburgo na sexta-feira (03/04) – apenas alguns dias após uma conferência sobre a situação desastrosa no país ter sido concluída no início desta semana -, a legislação parece ter sido elaborada para provar que a aliança ocidental obteve pouquíssimos resultados no Afeganistão. A lei proporciona apoio estatal à opressão da mulher e parece ter sido redigida para quase que obrigar os homens xiitas a tratar as suas mulheres como inferiores.

Karzai já estava sob ataque do Ocidente devido aos avanços que a Al-Qaeda e o Taleban estão fazendo no país. Como resposta, Cabul não perdia tempo em relatar os progressos feitos – enfatizando com frequência as novas escolas para garotas e o fato de mulheres terem sido eleitas para o parlamento. Mas agora a nova lei faz com que as alegações de avanços pareçam absurdas.

Violação da constituição

Os ativistas dos direitos das mulheres estão atacando a nova legislação relativa à família xiita. “Isso é uma violação clara da Constituição”, afirma Soria Sabhrang, da Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão, em Cabul. “Esta lei fará aumentar a violência contra as mulheres, e nenhuma mulher terá a quem recorrer para obter ajuda”.

A integrante do parlamento Sabrina Saqeb também está indignada. “Eu suspeito que Karzai sequer leu o texto da lei. Ele simplesmente aceitou as determinações do Hazara”, disse ela ao “Spiegel Online”, referindo-se ao grupo de etnia predominantemente xiita.

Karzai recebeu elogios de um campo desconfortável: o Taleban, que Karzai gosta de descrever como “os inimigos do Afeganistão”. A lei xiita é similar às leis do Taleban. “Nós apoiamos”, disse por telefone ao “Spiegel Online” Sabihulla Mujahed, que diz ser um porta-voz do Taleban. Não se sabe ao certo a intensidade das relações entre ele e a liderança política do Taleban.

É provável que a futura eleição presidencial no Afeganistão tenha influído na decisão de Karzai de assinar a lei. A sua reeleição não está nem um pouco garantida, e a sua influência fora da capital, Cabul, é limitada. Muitos no Afeganistão o consideram pouco mais do que um fantoche ocidental e ele tem poucos sucessos a apresentar. O apoio a Karzai é particularmente tênue entre os círculos religiosos, o que faz com que muitos suspeitem que a nova lei seja uma tentativa de conquistar os ultraconservadores. Ele pode também estar desejando obter alguns votos extras entre o Hazara.

Grande parte do problema

Mas entre os países da Otan que estão atualmente envolvidos na missão da aliança na Afeganistão, a aprovação da lei por Karzai foi um choque. Na última terça-feira, quando 90 países e organizações internacionais encontravam-se reunidos em Haia para discutir a situação no Afeganistão, a comunidade internacional procurava convencer-se de que pelo menos algumas das metas estabelecidas para o país foram atingidas. Porém, no final, muitos admitiram internamente que a maior parte dos aspectos da missão não está saindo conforme o planejado. A decisão de Karzai pareceu sublinhar o fato de que ele próprio representa uma grande parte do problema.

De toda maneira, a notícia da lei foi um grande tópico de discussão na conferência de cúpula em Haia. Em vez de ignorar esse tipo de questão delicada, como costuma ser o modus operandi em tais reuniões internacionais, o assunto foi enfrentado de frente. O ministro finlandês das Relações Exteriores, Alexander Stubb, questionou se o governo afegão, ou até mesmo o próprio presidente Karzai, estaria disposto a dar uma declaração a respeito da “notícia alarmante” de Cabul. Mas, até o final do dia, nenhuma declaração foi feita.

No entanto, os assessores de imprensa da secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, tiveram o cuidado de convidar uma jornalista afegã para a última entrevista coletiva à imprensa do evento, sabendo que ela perguntaria sobre a lei. “A minha mensagem é muito clara”, respondeu Hillary Clinton. “Os direitos das mulheres são uma parte central da política externa norte-americana no governo Obama. Eles não são um apêndice ou uma ideia agregada posteriormente”.

E Karzai, ainda que decidido a não tecer publicamente comentários a respeito da lei, sabe o que a aliança ocidental pensa. Fontes entre os diplomatas presentes na Conferência do Afeganistão disseram que Hillary Clinton mencionou especificamente a nova lei referente às famílias xiitas em um breve encontro pessoal com Karzai. Pouco tempo depois, o primeiro-ministro canadense Stephen Harper disse à rede de comunicações canadense CBE: “Progredir na área dos direitos humanos da mulher é um componente significante da ação internacional no Afeganistão. É uma mudança significativa que desejamos ver em relação aos velhos e negativos dias do Taleban”. Harper prosseguiu: “Creio que o presidente Karzai e os outros indivíduos que podem estar apoiando essa política enfrentarão uma pressão considerável”.

Não se sabe quais são os instrumentos à disposição do Ocidente para fazer com que o Afeganistão reverta a lei. Faz muito tempo que os países da Otan tomam cuidado em se manterem distantes das decisões políticas domésticas no Afeganistão a fim de evitar passar a impressão de que Karzai é apenas um fantoche.

No entanto, nos bastidores, a pressão provavelmente será intensificada. Bernd Mützelburg, o enviado especial da Alemanha ao Afeganistão e ao Paquistão, deixou claro para o governo de Cabul que Berlim está insatisfeita. Em ocasiões passadas o presidente afegão tendeu a curvar-se diante de tais pressões, mas com a aproximação da eleição, é difícil dizer se desta vez ele também cederá.

Günter Nooke, o comissário federal da Alemanha para Políticas de Direitos Humanos e Auxílio Humanitário, não poupou palavras duras dirigidas ao governo em Cabul. “Com esta lei, o governo afegão quebra promessas que fez à comunidade internacional no sentido de proteger os direitos humanos”, disse Nooke a “Spiegel Online”. “Toda vez que há uma questão envolvendo dinheiro, muitas coisas nos são prometidas. Mas, a seguir, nada acontece”.

Nooke pediu, como resposta à lei, restrições ao auxílio para desenvolvimento. “Quando leis como essa são aprovadas, temos que usar o nosso poder de veto. E, neste caso, é simplesmente uma questão de dinheiro”, afirmou Nooke.

Fonte: Der Spiegel

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