O ministro da Saúde, José Ramos Temporão, disse que o governo não vai se dobrar à pressão da Igreja e recuar nos programas de distribuição de anticoncepcionais e vai continuar defendendo a mudança na legislação do aborto como uma questão de saúde pública.

“A Igreja que transmita aos seus fiéis os seus princípios, o Estado tem que cuidar da saúde pública. Não estou nem um pouco preocupado com isto. Isto pra mim não tem a menor importância”, afirmou o ministro, em entrevista à BBC Brasil.

Sobre o aborto, o ministro disse que “não se pode fechar os olhos e fingir que não está acontecendo”.

“Aí surge a discussão de como se enfrenta isso. Um, através de uma política de planejamento familiar, democrática e acessível. Dois, através de mudanças na lei”, afirmou.

Ele disse que espera que o projeto de lei apresentado em 2005 pela ex-deputada Jandira Fegalli seja desengavetado agora e entre na pauta de discussões do Congresso.

O Ministério da Saúde está preparando um ‘PAC da Saúde’. Quando ele deve ser anunciado e quais são as principais ações?

Nossa idéia é que no segundo semestre esta proposta esteja pronta e operacionalizável. Ela pretende ter uma visão abrangente da saúde com algumas dimensões: a primeira é a promoção da saúde. Queremos trabalhar álcool, fumo, obesidade, padrão alimentar e atividade física. A segunda dimensão é da atenção à saúde, o atendimento quando a pessoa já está doente.

Esta é mais complexa, porque ela trata a maneira como você organiza o sistema, a qualidade da atenção e uma questão fundamental normalmente esquecida que é a qualidade dos profissionais que trabalham no sistema. A terceira dimensão é a gestão. Tem que melhorar a gestão. A administração pública saindo da administração direta para uma administração fundacional. Mas não é uma administração privada, é administração pública.

Precisa de mais dinheiro para isso, além do orçamento atual?

Não. Não vou dizer com certeza que não, mas se precisar é de pouco dinheiro. Tenho impressão que com o que o Ministério da Saúde gasta hoje com os nossos hospitais ele tem condições de fazer muito mais do que faz. É muito dinheiro, perto de R$ 1 bilhão que a gente gasta nos hospitais.

O senhor falou bastante nos últimos meses de assuntos muito polêmicos, mudanças na legislação de propaganda de bebida, ampliação da distribuição de anticoncepcionais. Muita gente critica, diz que esses assuntos são da esfera privada e o governo devia se concentrar mais em outras coisas, como epidemia de dengue e filas nos hospitais. Qual é a prioridade do governo?

Esta é uma visão atrasada da saúde, que eu combato. É uma visão estereotipada. No caso da propaganda de bebida, por exemplo, que isso seria uma interferência na liberdade de expressão. Que tipo de expressão? Submeter crianças a uma propaganda obscena, de estímulo irresponsável ao consumo de bebida? Não vejo nenhuma liberdade de expressão nem de opinião. É uma responsabilidade do Estado, proteger a saúde pública. Eu acho que esta é uma questão falsa. Não vejo nenhuma sustentação de que o Estado não tem que se intrometer. Acho até engraçado esta coisa de código de auto-regulamentação.

Houve críticas muito duras à distribuição de anticoncepcionais.

Só a Igreja que é contra. A Igreja não tem nada a ver com isso. A Igreja tem que prescrever seus dogmas aos que militam. O Estado não está obrigando ninguém a consumir pílula nem nada. Estamos informando para que os casais e as mulheres possam optar conscientemente pelo método que se adapta mais à sua visão de mundo e à sua peculiaridade.

Os casais que seguem os dogmas da Igreja vão usar o método natural, com todos os riscos que este método implica. Agora, a Igreja católica querer prescrever ao conjunto da sociedade sua visão não me parece razoável.

O Estado brasileiro é um Estado laico, não tem nada a ver com a Igreja. A Igreja transmita aos seus fiéis os seus princípios, o Estado tem que cuidar da saúde pública. Não estou nem um pouco preocupado com isto. Isto pra mim não tem a menor importância. Eu diria mais: 90% dos brasileiros aprovam o uso de camisinha, a Igreja é contra. O que eu percebo aí é um grande conflito entre a visão da Igreja e a visão da sociedade. Um conflito total, uma ruptura.

E esta resistência não pode levar a uma mudança na política do governo?

Não há hipótese de o governo se dobrar à pressão da Igreja. Basta ver a política que o presidente Lula lançou. Já está decidido. Não estamos discutindo. Nós vamos ampliar a oferta de métodos e vamos reduzir os preços nas farmácias.

De tudo o que senhor falou o que causou mais polêmica foi o aborto, uma discussão que sempre esteve pairando, mas agora o senhor colocou o dedo na ferida. O senhor chegou a dizer que não ia lançar um projeto sobre o assunto, que a discussão seria da sociedade. Mas não pode acontecer como aconteceu com o Estatuto do Desarmamento, que teve um plebiscito com um resultado contrário à posição do governo?

O presidente já foi muito claro em relação a isso: o presidente falou, primeiro, que é um problema de saúde pública. Segundo, ele também disse que acha que a legislação atual não dá conta da realidade. Eu também acho. Terceiro, quem tem que resolver isso é o Congresso nacional.

E o que o Executivo vai fazer?

Já fez. Lançou a política de planejamento familiar. Porque no limite, quanto mais informada, ou mais acesso aos métodos as pessoas tiverem, em tese, reduz a oportunidade de uma gravidez indesejada e reduz o recurso ao abortamento clandestino. E colocou para a sociedade esta questão.

O Congresso é que vai decidir, se haverá mudanças na legislação, e se ele se dará por lei ordinária ou por consulta pública (um projeto de lei de 2005 sobre o assunto tramita no Congresso).

E o governo vai fazer que tipo de pressão para que este projeto seja aprovado?

O governo vai participar das consultas públicas, dos debates. Eu como ministro da Saúde vou estar sempre me posicionando sobre esta questão. Não vou fugir do debate não. É uma questão de saúde pública grave, mata mulheres, as mulheres têm que ser ouvidas mais do que têm sido e o Congresso e a sociedade tem que enfrentar esta situação.

Mas não é um contrasenso, o Executivo levanta o debate e aí fala: não, eu não vou participar, deixa o Congresso decidir.

Porque é uma lei, já foi encaminhado. Só que estava engavetado. E agora está sendo desengavetado. Na semana que vem tem uma audiência pública.

O senhor acha que vai ter mudança?

Portugal demorou dez anos para aprovar um plebiscito. Isso é uma coisa que depende do grau de maturidade da sociedade. Pelo que tenho acompanhado pela mídia, a negação de que é um problema de saúde pública é muito frágil. Hoje diria que ninguém, nem mesmo a Igreja, pode afirmar isso. Seria uma irresponsabilidade. Não se pode fechar os olhos e fingir que não está acontecendo. Aí surge uma outra discussão, de como se enfrenta isso. Um, através de uma política de planejamento familiar, democrática e acessível. Dois, através de mudanças na lei. É a minha opinião. A opinião da Igreja é outra coisa – das igrejas, porque ela é multifacetada.

A Igreja Universal é a favor de mudar a lei. Vocês têm contato, eles poderiam ser um aliado?

Durante todo esse processo eu não recebi nenhuma igreja. Nem formalmente nem informalmente. Não fui procurado, nem procurei.

Mas o senhor acha que eles poderiam ser um contraponto à Igreja Católica?

Eles botaram três milhões de pessoas em São Paulo na semana passada. Parece uma coisa importante. Ou seja, está acontecendo alguma coisa muito importante na sociedade brasileira nesta questão. A legislação brasileira é de 1940. Sem mudança. Em algum momento a sociedade brasileira vai despertar e perceber que está diante de um problema sério.

O senhor acha que isso vai acontecer nesta sua gestão?
Espero, ficaria muito feliz que isso acontecesse.

Fonte: BBC Brasil

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