Desmontando o mito do “país pacífico”, equipe ecumênica internacional de Cartas Vivas visitou o Uruguai e sentiu como se manifesta a violência no âmbito da família, do Estado e da juventude, e quais são respostas das igrejas a esse quadro.

O impacto da realidade uruguaia mudou a visão idílica de alguns visitantes, afirmou o pastor Oscar Bolioli, presidente da Federação de Igrejas Evangélicas do Uruguai, anfitriã da visita.

“Esta não é uma sociedade pacífica”, sustentou o historiador e professor universitário Gerardo Caetano falando aos membros da equipe de Cartas Vivas procedentes da Alemanha, Noruega, Bolívia, Argentina, Brasil e Quênia, que visitaram o Uruguai de 9 a 11 de junho.

Cartas Vivas, como são denominadas as equipes de visitadores a vários países do mundo, é uma iniciativa do Conselho Mundial de Iglesias (CMI). As pequenas equipes ecumênicas visitam igrejas em diferentes países para escutar, aprender e compartilhar formas de responder aos desafios de superação da violência e fomentar a paz.

Segundo Caetano, a sociedade uruguaia passou por processo que se expressa no surgimento de “guetos de pobres e guetos de ricos”. Ela tem dificuldades de assumir seus conflitos. “É um país que explode para dentro”, destacou Caetano.

Enquanto os atores políticos são incapazes de refletir em profundidade sobre o tema, instala-se o mito no país de que a violência tem origem nos setores marginalizados e nos jovens, frisou o historiador.

A “criminalização” dos jovens foi sublinhada por Alva Negrín, doutora especialista em vícios. Ela explicou que, contrariamente ao que se costuma acreditar, o álcool é o vício mais estendido.

Uma das expressões da violência é a que se dá no interior das famílias. Esse fenômeno sempre existiu, mas escondido, disse Lilian Abracinskas, uma militante pelos direitos da mulher. A diferença é que agora “a gente se anima a falar” e mais casos aparecem.

O caso dos desaparecidos durante a ditadura que governou o país de 1973 a 1985 é um tema pendente na agenda da democracia uruguaia, sustentou Eduardo Pirotto, do Serviço de Paz e Justiça.

Organizações defensoras dos direitos humanos documentaram cerca de 300 casos de desaparecimento forçado. Uma Comissão para a Paz confirmou, em 2002, que 81 pessoas, 26 no Uruguai e 55 na Argentina, foram seqüestradas, torturadas e assassinadas em centros clandestinos de reclusão entre 1971 e 1981.

Sucessivos governos democráticos não mostraram vontade política para esclarecer a verdade e levar a juízo os responsáveis por esses crimes, sublinhou Pirotto. Para tanto, disse, ampararam-se numa lei de anistia de 1986, ratificada pelo voto cidadão num plebiscito em 1989. Um novo plebiscito para derrogar essa lei terá lugar em outubro próximo.

Um depoimento de primeira mão sobre a luta das vítimas do terrorismo de Estado foi o de Macarena Gelman. Filha de pais argentinos desaparecidos, Gelman nasceu em novembro de 1976 no Uruguai, onde sua mãe tinha sido transladada presa, no marco do plano de coordenação repressiva das ditaduras sul-americanas.

Adotada por um policial, a jovem recuperou sua identidade em 2000, depois do falecimento de seu pai adotivo e graças à busca incansável de seu avô, o internacionalmente reconhecido poeta argentino Juan Gelman. Hoje, Macarena Gelman continua buscando a verdade sobre a sua mãe, e conserva a esperança de que se faça justiça aos presos desaparecidos.

Seu testemunho representa o de muitos outros familiares que também procuram seres queridos desaparecidos, disse Bolioli. “De certa forma, fala da fragilidade da democracia uruguaia, violentada por um reduzido grupo que se crê acima da lei, dono da verdade e destino das pessoas.”

A equipe de Cartas Vivas visitou diversas atividades realizadas por igrejas uruguaias e outras organizações da sociedade civil, como a Pastoral da Mulher e da Família, da Igreja Metodista, e o Instituto da Boa Vontade, da mesma igreja. O instituto trabalha na formação de jovens adolescentes.

Na Fundação “Voz da Mulher”, uma organização pioneira no departamento de Colônia, os integrantes da equipe de Cartas Vivas tiveram a oportunidade de conhecer o trabalho que essa entidade vem desenvolvendo desde 1992 com mulheres, meninas, meninos e adolescentes em situação de violência familiar e abuso sexual.

A Fundação, constituída por pessoas da Igreja Evangélica Valdense do Rio da Prata, realiza tarefas de intervenção, prevenção e capacitação, e tem presença em hospitais, escolas, igrejas e outras instituições.

A equipe de Cartas Vivas encontrou-se com representantes da Primeira Campanha Nacional contra Maus Tratos de Crianças e Adolescentes, lançada em 2003 sob o nome “Um trato por um bom trato”. A campanha consiste numa vacinação simbólica com o objetivo de sensibilizar a sociedade. As pessoas ‘vacinadas’ se comprometem a escutar crianças e adolescentes vítimas de maus tratos e a protegê-los.

Na Obra Ecumênica do Bairro Apago, uma iniciativa da Federação de Igrejas Evangélicas do Uruguai, a equipe de Cartas Vivas entrou em contato com um trabalho de duas décadas dirigido a crianças, jovens e mulheres. No bairro, localizado ao norte da capital, vivem milhares de famílias de escassos recursos. Este trabalho se baseia na convicção de que a sociedade deve promover os setores excluídos em vez de reprimir os efeitos de um sistema social injusto.

As visitas de Cartas Vivas acontecem no contexto da Década do CMI para a Superação da Violência, com o propósito de preparar a Convocação Ecumênica Internacional pela Paz, que terá lugar em Kingston, na Jamaica, em maio de 2011.

Fonte: ALC

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