Criticar um religioso se converterá em delito com pena de prisão de seis meses a dois anos, se prosperar o projeto de lei de liberdade religiosa apresentado pela deputada evangélica Cynthia Hotton.

Esse é o ponto mais controvertido da iniciativa que começou a tramitar no início de agosto na Comissão de Relações Exteriores e Culto da Câmara baixa, na Argentina. O projeto responde a uma antiga reivindicação das igrejas evangélicas, que reclamam a criação de uma personalidade jurídica especial – de objeto religioso – que lhes confira status diferente ao de uma sociedade de fomento ou de um clube desportivo, como ocorre na atualidade.

Também atribuirá ao Estado a discutível potestade de definir qual prática é religiosa e qual não é. Mas o projeto não toca no status jurídico privilegiado da Igreja Católica, definido na Constituição Nacional. E não inclui o direito a não-professar religião alguma.

Em realidade, o projeto retoma um texto cuja discussão e consenso o então secretário de Culto, Norberto Padilla, do goveno de Fernando de la Rua, promoveu em 2001, com o objeto de substituir a Lei 21.745 regulamentada pela ditadura militar.

A desintegração da gestão da Aliança sepultou aquela iniciativa. A deputada Hotton introduziu nele algumas modificações e atribuiu-se a paternidade, ainda que procurou o apoio de referentes de diferentes forças para que não ficasse rotulado como um projeto do PRÓ.

Assim, apoiaram a iniciativa Rubén Sciutto e Antonio Morante, da Frente para a Vitória; Juan Carlos Moram e Fernando Iglesias, da Coligação Cívica; Federico Pinedo, do PRÓ; Daniel Katz, do Consenso Federal; e Luciano Fabris e o falecido José Ignacio García Hamilton, da UCR. O projeto responde aos interesses dos grupos religiosos. Ele foi apresentado em dezembro de 2008 e no início de agosto foi incorporado à ementa da Comissão de Relações Exteriores e Culto, encabeçada pelo kirchnerista Eduardo Ruperto Godoy.

Hotton pretende capitalizar a sanção desta polêmica lei ao interior do campo religioso, principalmente entre os grupos evangélicos, de onde, paradoxalmente – ou não –, procura acrescentar seu capital político. Os grupos evangélicos se converteram nas últimas décadas na primeira minoria religiosa: representam 9% da população, segundo a Primeira Enquete sobre Crenças e Atitudes Religiosas na Argentina, realizada em 2008 através de trabalho articulado entre quatro universidades nacionais.

Em março, Hotton se desvinculou da bancada do PRÓ e formou um bloco individual, que leva o nome de sua agrupação político-religiosa: Valores Para Meu País (VPMP). De toda forma, segue fazendo parte do bloco Proposta Federal, encabeçado por Federico Pinedo e Francisco de Narváez.

Hotton diz que seu projeto tem o apoio do cardeal Jorge Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, e que conta com o respaldo da Aliança Cristã Evangélica da República Argentina (Aciera), que congrega a maior quantidade de igrejas evangélicas, as que mais cresceram nos últimos anos (pentecostais, batistas, Assembléia de Deus), com exceção das históricas.

No entanto, negaram-lhe apoio a Federação Argentina de Igrejas Evangélicas (FAIE), que reúne luteranos e metodistas, porque consideram que Hotton está se atribuindo um projeto que não é dela.

O pastor Juan Abelardo Schwindt, da Igreja Evangélica do Rio da Prata (integrante de FAIE), considerou – em diálogo com este diário – que uma lei de liberdade religiosa, como a proposta pela deputada, não é necessária, já que existe uma lei antidiscriminatória e trabalha-se para defender a liberdade de consciência.

Acadêmicos ouvidos por Página 12 concordaram que se trata de uma iniciativa supérflua e inútil. Nesse sentido, o doutor em Sociologia, Juan Esquivel, recordou que os resguardos jurídicos à liberdade religiosa na Argentina são de longa data.

Suas origens, precisou, remontam a 1825, quando um tratado assinado com a Grã-Bretanha garantiu aos ingleses o livre exercício de seu culto. “O Congresso Constituinte de 1953, disposto a facilitar o enraizamento de migrantes de múltiplos países europeus, portadores de culturas, religiões e línguas diversas, contemplou a liberdade de culto no artigo 14º da Carta Magna.

Desde então, o regulamento, ratificado na reforma de 1994, protege o direito de professar livremente o culto. Complementariamente, a Argentina é signatária de diversos tratados internacionais que gozam de status constitucional e que fazem referência à liberdade de consciência, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, detalhou Esquivel.
O artigo mais polêmico do projeto é o 31, que incorpora um novo capítulo ao Código Penal sob o título de Delitos “contra a liberdade religiosa e de consciência”. Entre os diferentes tipos penais que cria, o mais grave é o que prevê prisão de seis meses a dois anos para quem “agredir de fato ou em palavra a um ministro de uma confissão religiosa reconhecida em ocasião do exercício de atos próprios de seu ministério ou pelo fato de sê-lo”.

“Aqui está o problema que pode dar lugar a arriscadas interpretações”, advertiu o advogado penalista Ciro Annicchiarico.

A respeito da agressão “de fato” ele é redundante, considerada a lei vigente: qualquer agressão física, a qualquer pessoa pelo fato de sê-lo, já está prevista na lei penal, assinalou Annicchiarico.

“O problema está na parte que expressa: ‘agredir em palavra’. Se em tal caso por agressão se entenda algum suposto de injúria ou calúnia, conforme aos artigos 109 e 110 do Código Penal, ainda que se trate de disposições discutíveis a respeito das quais muitos penalistas defendem a sua eliminação, por obsoletas e condicionantes da liberdade de expressão, caberia dizer o mesmo: não faria defeituosa incluir outra disposição mais. Agora bem, se por agressão ‘de palavra’ a alguém, sem escrúpulos ou intencionalmente se lhe ocorresse entender ‘crítica’, ‘questionamento’, ‘manifestação de opinião adversa’, ainda que for efetuada de maneira veemente, então sim estaríamos mal. Este projeto, nesse aspecto, parece invadir perigosa e em tal caso inconstitucionalmente o lugar do direito ao debate e à crítica de idéias”, opinou Annicchiarico.

“É o mais perigoso de todos os artigos”, disse. “Parece ter sido pensado expressamente para aplacar as críticas aos personagens nefastos da Igreja Católica como (Julio César) Grassi e (Christian) von Wernich”, assinalou Cristina Ferreyra, da Associação Civil de Ateus na Argentina (Argatea), em referência ao sacerdote condenado a 15 anos de prisão por abuso sexual de menores e ao ex-capelão da Polícia de Buenos Aires sentenciado à prisão perpétua pela comissão de delitos de lesa humanidade.

O projeto promovido por Hotton cria o Registro Nacional de Confissões Religiosas, dentro da Chancelaria, ante o qual poderão tramitar sua inscrição “as igrejas, comunidades e confissões religiosas” que desenvolvam suas atividades dentro do território argentino.

Assim, poderão obter personalidade jurídica de objeto “religioso”, que lhes permitirá aceder, entre outros benefícios, a isenções de taxas. Sua inscrição ficará condicionada ao cumprimento de uma série de requisitos.

Neste ponto, Esquivel adverte sobre outro aspecto polêmico da proposta legislativa: “Outorga-se ao Estado a discutível atribuição de definir qual prática é religiosa e qual não é. Na realidade, ao poder político compete tutelar pelo direito à liberdade de consciência e de religião indicado na Constituição Nacional, mas não é de sua competência definir o que é uma religião”, assinalou Esquivel.

Para o pesquisador, as matérias pendentes em termos de legislação religiosa passam por introduzir reformas que promovem uma maior igualdade entre os cultos e pela derrogação lisa e plana da Lei 21.745 que impõe, como condição prévia de atuação no país a todas as igrejas e comunidades religiosas diferentes da Igreja Católica Apostólica Romana, a inscrição e o reconhecimento por parte do Estado nacional.

“México e Brasil são dois exemplos próximos nos quais não há lei de liberdade religiosa e, no entanto, suas instituições e indivíduos gozam da mais ampla liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, concluiu.

Cynthia Hotton vem de uma família com um alto prestígio no círculo dirigente evangélico. Economista, diplomata de carreira, casada com um importante empresário hoteleiro, Hotton se converteu na opositora militante no Congresso à legalização de casais do mesmo sexo, à regulamentação do aborto e à despenalização da posse de drogas para uso pessoal.

Até há cinco anos se congregava na igreja Irmãos Livres, do bairro portenho de Belgrano. Mas depois mudou de templo: elegeu maior igreja pentecostal de Buenos Aires, Rei dos Reis, a cargo do pastor Claudio Freidzon, com quem está realizando diferentes atividades em conjunto com seu espaço político. Religião e política imbricadas sem segredos.

Fonte: ALC

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