O “projeto de lei que reafirma os princípios republicanos” chegou ao Conselho de Ministros nesta quarta-feira, 9, após meses de discussão, marcados por vários ataques jihadistas e por críticas internacionais ao presidente Emmanuel Macron por sua defesa do modelo secular francês.

A França pretende combater o extremismo islâmico com uma nova legislação que protegerá os funcionários públicos de pressões radicais, garantirá que todas as associações respeitem o secularismo e limitará as possibilidades de educação de menores de idade em casa.

A lei, que o Parlamento começará a debater em janeiro de 2021, busca combater o que Macron chama de “separatismo islâmico”, mas seu texto evita mencionar qualquer religião específica. Ela não aborda medidas antidiscriminação em bairros onde o islamismo impera, nem entra na questão da organização dos imãs franceses e sua dependência de países estrangeiros.

A apresentação coincide com o 115º aniversário da chamada Lei do Secularismo, que garante a liberdade de culto e a neutralidade do Estado em relação a diferentes religiões.

“Este projeto de lei não é um texto contra as religiões ou contra a religião muçulmana em particular. É um texto de liberdade, de emancipação do fanatismo religioso”, disse o primeiro-ministro Jean Castex, em discurso diante do Conselho de Ministros.

Campanhas de boicote contra a França em países muçulmanos, instigadas por líderes como o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, e alguns artigos da imprensa americana e britânica preocuparam Paris.

Ao eliminar da lei as referências ao separatismo ou ao islamismo, o governo francês quis dissipar a percepção, em certas áreas, de que o texto é contra os quase seis milhões de muçulmanos que vivem no país e de que o liberal Macron deu uma “guinada iliberal” em sua Presidência.

A lei — uma das últimas iniciativas importantes pendentes de Macron antes das eleições presidenciais de 2022 — contém duas partes. A primeira visa “garantir o livre exercício do culto” e irá reforçar a vigilância ao financiamento e ideologia das associações religiosas. A outra parte busca “garantir o respeito aos princípios republicanos”. Obriga funcionários de empresas subcontratadas pelo setor público — como uma transportadora — a não expressar sua filiação religiosa, usando véu, por exemplo.

Qualquer associação privada que busque uma ajuda governamental, como um time de futebol, deve se comprometer a respeitar os valores republicanos e a igualdade entre homens e mulheres. A medida se baseia na constatação de que associações aparentemente não religiosas servem para doutrinar. A lei criminalizará os chamados certificados de virgindade, que alguns médicos emitem para mulheres antes de se casarem. E também vai apertar os controles para prevenir casamentos forçados e poligamia.

Macron descreveu em um discurso em 2 de outubro as linhas principais do que deveria então ser chamada de Lei contra o Separatismo. Partiu de um diagnóstico, que não é novo, mas que os atentados de 2015 (contra o Charlie Hebdo e o Bataclan) colocaram no centro do debate: a existência de bolsões de radicalização em bairros franceses, a crença de alguns muçulmanos de que as normas religiosas prevalecem sobre as leis da República, e a presença, desde 2014, de cerca de 1.500 franceses nas fileiras do Estado Islâmico na Síria e no Iraque.

decapitação do professor Samuel Paty, em 16 de outubro, pelas mãos de um terrorista islâmico — por mostrar cartuns de Maomé em uma aula sobre liberdade de expressão — reforçaram os argumentos do presidente francês de que o islamismo, às vezes sem ser especificamente violento, poderia ser um terreno fértil para o jihadismo. Ao mesmo tempo, a defesa de Macron do direito de blasfemar e o fechamento de associações islâmicas após o ataque gerou críticas por uma suposta estigmatização dos muçulmanos na França.

Os ataques recentes moldaram o texto legislativo. Por um lado, com a inclusão de um artigo que prevê penas de prisão para quem ameaçar, intimidar ou agredir um membro do serviço público. Foi o que aconteceu com o professor, perseguido pelo pai de um aluno insatisfeito com o que ele ensinava nas aulas.

Outro artigo perseguirá a disseminação de informações que permitam localizar uma pessoa e colocar em risco sua integridade física ou mental. Mais uma vez, foi o que aconteceu com Paty, localizado pelo terrorista que o assassinou através das informações que o pai em questão havia espalhado nas redes sociais.

Os dramáticos acontecimentos atuais também levaram o governo a ser extremamente cuidadoso para não estigmatizar nenhuma religião e aplicar as medidas a todas elas. Isso teve um efeito colateral: outras religiões se sentiram ofendidas pela lei. Aconteceu, por exemplo, com o controle de escolas particulares ou a proibição do ensino em casa desde os 3 anos, prática que alguns muçulmanos usam para retirar menores da escola, mas mais comum entre cristãos.

Uma nova redação permitirá exceções por motivos de saúde ou quando os pais puderem justificar um projeto pedagógico sólido.

“Na França, o espaço do religioso é cada vez mais reduzido sob o pretexto de lutar contra o separatismo muçulmano”, disse, após o discurso de Macron, o cientista político Olivier Roy, professor do Instituto Universitário de Florença e especialista em islamismo.

Roy citou escolas particulares religiosas, muitas das quais católicas ou judias.

“Cada medida governamental, em vez de focar em um problema islâmico específico, se estende aos religiosos em geral. A expulsão da religião do espaço público aumenta a tensão entre o secularismo e a religião”.

Fonte: O Globo com informações de El País

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