Há 8 mil padres casados no Brasil. Eles não podem celebrar missa nem oficializar união na Igreja. E lutam para acabar com a exigência do celibato. O padre que decide deixar a Igreja é obrigado, pelo Vaticano, a assinar uma carta de desligamento, na qual assume que não tem vocação para o ministério.

Assim que terminou a missa de domingo, o padre Lauro Nogueira Sá Motta anunciou aos fiéis que iria se casar. Diante do alvoroço que tomou conta da paróquia, alguém deu a idéia de um plebiscito. Quem aceitasse a permanência dele como chefe da igreja local que levantasse a mão. Quase todos ergueram os braços. Depois de ovacionado, o pároco tomou coragem e foi falar com o bispo. “Disse a ele que o povo queria que eu ficasse na igreja mesmo casado. O bispo respondeu que o Vaticano não deixaria”, diz Motta. “Era mais um motivo para eu sair, porque o Vaticano estava distante do povo.”

O episódio, que movimentou a pequena cidade de Iguatu, no Ceará, aconteceu em 1972. Dois anos depois, Motta se casou com Laura, ex-secretária em um curso em que ele dava aulas de Teologia. Ele hoje tem três filhos e quatro netos. A Igreja Católica não mudou em nada a postura de proibir que seus padres se casem. Mas não pode impedi-los de largar a batina. A organização Rumos, que reúne os sacerdotes que largaram a Igreja, estima haver 8 mil padres que se casaram no Brasil. No mundo, eles seriam 150 mil. É um número expressivo. Pelos dados do Vaticano, há 400 mil padres em atividade.

No Brasil, o grupo é unido e organizado. Tem até um jornal próprio, que circula mensalmente. A cada dois anos, ocorre o Encontro Nacional das Famílias dos Padres Casados. A 17ª edição foi no Recife, entre os dias 10 e 13 de janeiro. Na reunião, eles trocam experiências, orientam os recém-casados e divulgam um manifesto pedindo o fim do celibato. O Vaticano, mais uma vez, vai ignorar o documento, como fez com os outros 16 já enviados pelo grupo. “O Vaticano é irredutível, mas a forma como o sacerdócio está regulamentado é ultrapassada, e há necessidade de uma diversificação”, diz Armando Holyzewski, presidente da associação Rumos. Ele foi padre durante 11 anos. Saiu da Igreja para se casar.

A saída do ministério costuma ser dramática para quase todo pároco. Depois dos nove anos de seminário e de outros tantos exercendo o sacerdócio, quem renuncia à vida na paróquia abandona bem mais que uma escolha ou vocação. “Deixar a batina não é como trocar de emprego, sair de um banco e ir para o outro. É deixar para trás uma opção de vida, os votos feitos, o comprometimento assumido”, diz o psicanalista João Batista Ferreira. “É uma escolha difícil, e vários padres passam a vida se perguntando se o caminho escolhido é o certo.” Ele fala com conhecimento de causa. Ex-padre, deixou a Igreja e hoje tem entre seus pacientes párocos na mesma situação. Para muitos, o ideal seria conciliar o sacerdócio com a vida conjugal.

O movimento dos padres casados não reivindica o fim do celibato, mas o de sua obrigatoriedade. Para Holyzewski, o celibato deveria ser opcional. “A Igreja não tem o direito de impedir o homem de se reproduzir.” O celibato tornou-se obrigatório na Igreja no século XVI, no Concílio de Trento. Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutor em Direito Canônico, Jesus Hortal diz que o celibato segue o ensinamento de Cristo, que o teria defendido para dar mais liberdade à pregação. “Jesus exortou os pregadores a permanecerem céleres como ele, a seguir seu exemplo para ter disponibilidade completa para a pregação.” Hortal afirma que os padres precisam de dedicação exclusiva e não podem perder tempo com questões familiares quando têm assuntos da Igreja a tratar. “É uma medida disciplinar e uma questão de prudência.”

Em outras religiões não é assim. Há até preferência por sacerdotes casados. Pastor da Igreja Batista, Clemir Fernandes diz que perdeu uma vaga na congregação por ser solteiro. “O trabalho pastoral envolve aconselhamento familiar. Como alguém que não constituiu família pode falar sobre casamento?” Casado há 18 anos e pai de três filhos, o rabino Nilton Bonder diz que o judaísmo estimula o casamento pelo mesmo motivo. “Esse tipo de disciplina vai contra a natureza humana. O rabino tem de casar, trabalhar, conhecer a vida em seus meandros”, diz. Hortal afirma que esses argumentos não são válidos. “Um médico precisa já ter sofrido a mesma doença para poder tratar o paciente?”

Os padres casados costumam citar o exemplo da turma de 1958 do seminário de Mariana, Minas Gerais, para mostrar como o casamento de sacerdotes afeta o catolicismo. Dos 29 formandos daquele ano, sete morreram, oito se casaram e 14 continuam na Igreja.

O padre que decide deixar a Igreja é obrigado, pelo Vaticano, a assinar uma carta de desligamento, na qual assume que não tem vocação para o ministério. Depois, o Vaticano o rebaixa ao “estado de leigo”: os padres ficam proibidos de pregar, dirigir paróquias e não podem se casar na Igreja – o que parece ser uma última penitência. “Claro que eu preferia ter casado no religioso, mas a Igreja nos ensina que Deus não está preso aos sacramentos”, diz o ex-padre Wilde Ricardo, de 41 anos, que deixou a igreja que comandava em Niterói, no Rio de Janeiro, em 2001. Wilde se casou um ano depois com uma ex-freqüentadora da paróquia. Hoje eles têm um filho de 6 meses, e Wilde dá aula de Teologia e Filosofia num curso da cidade. “Estou feliz, mas ficaria mais realizado se pudesse continuar na Igreja. As duas coisas não se excluem.”

Uma vez do lado de fora, os padres têm de se recolocar no mercado de trabalho com um diploma que lhes permite dar aulas de Teologia ou Filosofia. Os que se casam iniciam um novo estilo de vida, mas rejeitam o termo “ex-padre”. “Um médico que não exerce a medicina continua sendo médico, um advogado também. O padre é um padre pelo sacramento que recebeu. Não somos ex-padres, somos padres que se casaram. Continuamos com nossa fé”, afirma Holyzewski. Para ele, começar um relacionamento conjugal foi difícil. “Ela via em mim a figura do padre. Era viúva, não pensava em se casar, muito menos comigo.” Holyzewski diz que a adaptação ao casamento é demorada. “O padre se acostuma a ser o chefe, muitos têm um viés autoritário e acham que a mulher tem de se comportar como sua coroinha.”

Os casos de pedofilia que envolvem padres, no mundo inteiro, suscitam um debate sobre até que ponto a repressão sexual influi na deturpação da libido. “A pedofilia na Igreja é conseqüência direta do celibato”, afirmou Arnaldo Jabor, ex-seminarista, num artigo publicado no jornal O Globo. “A sexualidade, força máxima da vida, uma vez esmagada, vira uma máquina de perversões.” Hortal rebate. “Isso é uma estupidez sem tamanho. A pedofilia não se dá exclusivamente entre pessoas céleres, dá-se também entre os casados. Aliás, a imensa maioria dos pedófilos é casada”, diz.

Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, Paulo Fernando Carneiro de Andrade afirma que o celibato pode ser revisto porque não é um dogma da Igreja, mas uma disciplina eclesiástica. Segundo ele, em dois episódios, padres casados puderam entrar para a Igreja Católica. Os papas Pio XII e João Paulo II ordenaram pastores anglicanos casados que se converteram ao catolicismo e viraram padres. Nas contas dos casados, nada menos que 39 papas tiveram mulheres. O celibato, diz Andrade, vale apenas para a igreja latina, que segue a doutrina romana. Na Ucrânia e no Líbano, padres católicos podem ser casados, porque a Igreja Católica do Oriente permite.

Foi inconformado com o celibato que o padre Mauro Queiroz, hoje com 75 anos, deixou a Igreja. Ele se casou em 1974 e hoje tem três filhos. “Não me arrependo. O futuro de um padre é muito triste. Ele não tem família, não tem quem cuide dele na velhice. Morre sozinho, agarrado a uma causa em que a maioria não acredita mais.”

Fonte: Revista Época

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