Qum geralmente não é tida como uma localidade divertida. Esta é uma cidade cinzenta, castigada pelo sol, que funciona como o centro de aprendizado do islamismo xiita. A atmosfera é solene, as suas lojas tendem a ser velhas, baixas e em mau estado de conservação, e ela é repleta de membros do clero e de policiais.

Mas na última terça-feira, o clima em Qum era de festa. Luzes brilhantes e bandeiras decoravam a cidade. Foi o início das comemorações referentes ao aniversário do imame Muhamad al-Mahdi, o redentor da fé xiita. O aniversário propicia aos xiitas uma chance de comemorar uma data de nascimento, em vez de fazer luto por uma morte, o que costuma ser o foco dos dias sagrados na cidade.

Os xiitas acreditam que o imame Mahdi, o 12° imame em uma linha direta familiar a partir do profeta Maomé, esteja vivo, mas que permanece invisível desde o final do século nove, e que somente reaparecerá quando a corrupção e a injustiça alcançarem o apogeu. Este ano, coerentemente com os esforços do governo no sentido de promover e obrigar o cumprimento dos valores religiosos sob o governo do presidente Mahmoud Ahmadinejad, a comemoração está sendo alvo de grande atenção do Estado, que chegou a ponto de estender o feriado em mais um dia.

Em qualquer estrutura social, a religião e a cultura são componentes essenciais da identidade nacional, cada uma delas contribuindo para os princípios fundamentais da sociedade. No decorrer da história iraniana, a fé muçulmana e a cultura persa se mesclaram intimamente. Mas líderes sucessivos tentaram privilegiar uma ou outra em uma constante competição pela conquista da alma nacional, geralmente com o objetivo de fortalecer a autoridade do governo. No entanto, nenhuma dessas tentativas teve sucesso total.

Sob o regime da dinastia Pahlavi, os xás que governaram o Irã de 1925 a 1979, a meta era colocar o nacionalismo iraniano acima da identidade muçulmana. Atualmente, o que ocorre é o oposto, especialmente após a eleição de Ahmadinejad, cuja plataforma de campanha se baseou no retorno do Irã aos valores revolucionários xiitas.

Mas, segundo clérigos e analistas políticos, agora as chances de sucesso parecem ser maiores do que no passado.

“Creio que alguns acadêmicos e setores do governo têm essa intenção”, afirma Fazel Meybodi, um clérigo que leciona na Universidade Mofid, em Qum. Ele fala cuidadosamente, para evitar ofender as autoridades. “Mas penso que eles não terão sucesso”.

Após a morte do profeta Maomé, o islamismo se dividiu em dois ramos principais, o sunita e o xiita. O cerne da discórdia entre as duas tendências diz respeito a quem seria o sucessor de Maomé.

Os xiitas acreditam que o correto é seguir a árvore genealógica da família do profeta, e, assim, adotaram como guias os 12 imames. Devido a essa crença cultivada por uma minoria, os xiitas foram historicamente subjugados e perseguidos pelos sunitas, de forma que os perseguidos passaram a ver os imames como combatentes pela justiça e contra a opressão. Estas são idéias cruciais que esclarecem muita coisa relativa à atual classe política iraniana.

As pessoas daqui dizem que, seguindo a ênfase xiita nos termos opressão e justiça, Ahmadinejad rotulou os Estados Unidos de o “Grande Opressor”, um termo que substituiu o anteriormente popular “Grande Satã”. Mas o seu fervor fez com que ele se tornasse alvo de críticas para aqueles que não são tão religiosos, e até para aqueles que são.

“O senhor Ahmadinejad conhece pouco o islamismo”, afirma Ali Akhbar Dashdy, porta-voz da Universidade Mofid. “Ele não é um clérigo, e só conhece aquilo que ouve as pessoas falarem”.

Alguns dos críticos do presidente no exterior dizem que ele é um devoto tão grande da idéia do retorno do imame que está inclinado a dar início a um armagedon para precipitar aquele acontecimento. Mas ninguém aqui parece acreditar nisso, ou pelo menos as pessoas não dizem tal coisa publicamente.

E alguns chegam a zombar do presidente, dizendo, por exemplo, que ele investiu dinheiro na pavimentação de uma rodovia especial, a fim de acelerar o retorno do imame – um outro boato que parece não ter nenhuma vínculo com a realidade.

Mas como as pessoas estão comemorando este aniversário? De várias maneiras diferentes, apesar das tentativas de Ahmadinejad de promover a identidade muçulmana. A comemoração é uma mistura – como o próprio Irã – de cultura e religião.

As pessoas fornecem alimentos, freqüentemente jogando embalagens de sucos e doces nos carros que circulam pelas ruas. Elas fazem piqueniques e observam espetáculos de fogos de artifício. São realizados até mesmo concertos ao ar livre.

E em Qum, o governo organizou uma mostra abaixo do Santuário Masumeh, um local popular de peregrinações. Foram instalados estandes, como em uma convenção. Há um local para as pessoas fazerem blogs sobre o imame Mahdi. A Agência de Notícias Futuro Brilhante ocupou um estande, e um outro fica repleto de clérigos que fornecem conselhos pessoais.

Há também um que alerta as pessoas para o perigo representado pelos “adoradores de Satanás”. Há uma estrela de Davi na entrada, colocada no topo de uma réplica do Monumento de Washington (que também foi descrito como um símbolo satânico, porque tem a forma de um obelisco).

Também foi apresentado um filme sobre “cultos pervertidos”, que se concentrou na fé Bahai.

Havia filas de homens e mulheres que se dirigiam à Mesquita Jamkaran, nos arredores de Qum. E este é um outro exemplo daquilo que divide e motiva os iranianos. Muitos acreditam que a mesquita seja um local para onde possam levar mensagens endereçadas ao imame Mahdi, a fim de terem os seus desejos atendidos. Outros enxergam nisso uma tolice.

A mesquita foi construída depois que um aldeão sonhou, no ano 974, que o imame Mahdi lhe informou em que local retornaria, tendo mostrado a ele a localização exata, que é onde atualmente se encontra o santuário. Dentro da mesquita há uma cavidade na qual os visitantes depositam as suas cartas com pedidos, e na terça-feira a multidão era tão grande a ponto de os ônibus nos quais as pessoas embarcaram não terem podido fechar as portas.

E isso, talvez, ilustre uma outra característica iraniana – uma afinidade pré-islâmica pela espera. Quando os iranianos praticavam o zoroastrismo, eles também aguardavam um salvador, chamado Saoshyant. Eles dizem que aquilo ajudou o povo a suportar o estresse provocado por sucessivos governos tirânicos.

Segundo os acadêmicos, isso se coaduna bem com o islamismo xiita. “Os iranianos sentem-se confortáveis na condição de xiitas”, explica Muhammad Sanati, um psicólogo social de Teerã. “Eles sentem-se em casa com a perspectiva da chegada de um profeta. Estão esperando confortavelmente, esperando a salvação, esperando para serem salvos, esperando futuros dias bons”.

Fonte: The New York Times

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