A advogada muçulmana Zoubida Barik Edidi foi obrigada por um juiz a abandonar a tribuna de uma sala da Audiência Nacional da Espanha [tribunal de exceção com sede em Madri e jurisdição em todo o país, funcionando tanto como tribunal de apelação como de instância; julga delitos contra a Coroa ou membros do Governo, crime organizado, terrorismo, narcotráfico, etc.] por usar um lenço cobrindo seu cabelo, e agora faz uma pergunta razoável: pode ser advogada na Espanha e usar seu lenço? Diz que só pretende que alguém lhe responda sim ou não. Não quer estar ao sabor da opinião pessoal de cada juiz que lhe caiba na sala de audiência.

O debate transcende esta letrada. Com uma crescente porcentagem da população emigrantes que professa religiões que impõem a seus fiéis usar símbolos externos e visíveis, é necessário uma certa segurança jurídica. Um sique com turbante, uma muçulmana com lenço ou um judeu com solidéu podem exercer a advocacia, ser professores, policiais, juízes ou promotores? E uma freira com véu? Um padre com batina?

Os países do nosso entorno o resolveram de formas muito díspares. No Reino Unido, Zoubida Barik poderia ter assistido ao julgamento com seu lenço sem nenhum problema, enquanto na França laica deveria tê-lo tirado para subir à tribuna. A Dinamarca proibiu no ano passado os juízes de usar símbolos religiosos, mas não os advogados. Fez assim porque os magistrados representam o Estado quando administram a justiça, e o legislador dinamarquês entendeu que eles devem ser neutros e imparciais. A Espanha ainda precisa decidir seu modelo.

Quando se fala nesse tema é preciso diferenciar duas questões. Por um lado, os símbolos religiosos presentes nos espaços públicos, como tribunais ou escolas. Apesar da aconfessionalidade do Estado espanhol, ainda há um grande número de tribunais e de salas de aula em nosso país presididas por grandes crucifixos. O Ministério da Educação não quer regular o tema nos colégios. Diz que os conselhos escolares devem decidir. Um pai levou um desses casos aos tribunais e ganhou em primeira instância, no fim do ano passado. O tribunal ordenou que o crucifixo fosse retirado, aplicando o princípio da igualdade e da liberdade religiosa e a aconfessionalidade do Estado expressos na Constituição. A sentença está em recurso pela Junta de Castela e Leão, mas por enquanto o crucifixo não está mais na classe.

O Tribunal de Direitos Humanos de Estrasburgo acaba de condenar a Itália por permitir esses símbolos religiosos nas escolas. Segundo a doutrina da corte, viola-se o direito à liberdade de consciência passiva e a neutralidade religiosa do Estado.

A questão é outra quando símbolos religiosos não são assumidos por uma instituição (administração de justiça, a escola pública…), mas por indivíduos concretos que expressam sua religiosidade, como ocorre com Zoubida. Ela está sempre vestida com o hijab, que não cobre seu rosto. Desde que se formou advogada, em fevereiro passado, seu lugar de trabalho é muitas vezes uma sala de audiências.

Quando o magistrado da Audiência Nacional Javier Gómez Bermúdez lhe pediu que tirasse o lenço ou deixasse a tribuna, em 29 de outubro passado, ela não representava nenhum acusado. Durante as primeiras sessões do julgamento esteve sentada entre o público. Um letrado lhe propôs um dia subir para sentar-se junto dele. Em troca ela lhe ofereceu ajudá-lo com as conversas em árabe que se escutavam no processo. No primeiro dia em que vestiu a toga não aconteceu nada. No segundo, o magistrado lhe disse que as partes não podiam usar a cabeça coberta e que se não tirasse o hijab deveria baixar da tribuna. Ela saiu e na terça-feira passada apresentou uma queixa ao Conselho Geral do Poder Judiciário por abuso de poder e discriminação. “Fiz isso sobretudo para saber o que esperar no futuro”, salienta.

Fontes da Audiência Nacional afirmam que o presidente da Sala do Penal agiu na tentativa de evitar a presença de símbolos religiosos durante a audiência. Essas mesmas fontes lembram que, como a advogada não representava nenhuma das partes envolvidas no processo, não foi violado o direito de defesa e que o incidente ocorreu quando ainda não havia começado a audiência pública, isto é, sem que houvesse público na sala.

Segundo essa versão, o presidente do tribunal a convidou a tirar o lenço para continuar com o processo, mas ela se negou e saiu sem protestar nem recorrer da decisão de Bermúdez. A advogada indica que não soube o que fazer: “Fiquei tão surpresa com o que aconteceu que só pensei em lhe explicar que antes havia participado de julgamentos sem nenhum problema. Assim protestei. Ele só me expulsou por usar o lenço”.

Em Ceuta, onde estão mais acostumados com a presença de advogadas muçulmanas, nunca houve um caso desse tipo. A conselheira do Conselho Geral da Advocacia e decana do Colégio de Advogados de Ceuta, Isabel Valriberas, mostra-se muito surpresa pelo que ocorreu na Audiência Nacional. “Não há qualquer norma que proíba os símbolos religiosos”, afirma. “A liberdade de expressão religiosa, reconhecida na Constituição, não é incompatível com a justiça. Se uma pessoa usa lenço em sua vida cotidiana, por que deveria tirá-lo para participar de um julgamento?”, reflete.

“Isso não altera a ordem no tribunal. É intranscendente para efeitos jurídicos. O único que as normas da advocacia pedem é que o letrado esteja vestido adequadamente, segundo os usos sociais, mas um lenço não implica estar mal vestido. A ‘burqa’ é diferente, porque não permite que a pessoa seja identificada. O hijab não oculta o rosto, não oculta nada.”

Assim como essa advogada, três colegas que participaram do julgamento por terrorismo islâmico na Audiência Nacional em que o juiz Bermúdez pediu a Zoubida que tirasse o lenço, manifestam sua absoluta surpresa pelo que aconteceu nesse dia.

Com a legislação atual na mão, os que professam uma fé podem expressá-la na esfera pública ou não? Dionisio Llamazares, catedrático emérito da Universidade Complutense e diretor da cadeira de laicidade e liberdades públicas da Universidade Carlos 3º de Madri, opina que por não haver uma proibição, como na França, devem-se extremar as cautelas nas restrições que se aplicam. “Em princípio, entendo que só se pode impedir alguém de usar um símbolo religioso se isso envolver um risco para a ordem pública, porque entram em jogo direitos fundamentais do cidadão”, explica.

Llamazares propõe um modelo semelhante ao dinamarquês para resolver essas questões. “A polícia, os promotores, os professores da escola pública ou os juízes representam o Estado, e o Estado não pode usar símbolos de identificação religiosa. Deve ser neutro e imparcial nessa matéria. Mas um advogado, ou a aluna de um colégio, não representam o Estado, então por que não poderiam expressar sua religiosidade? Outra coisa é que ocorra algum problema em um caso concreto, pelo qual não convenha permiti-lo.

Pelo caso de Zoubida, o debate se concentrou agora na administração da justiça. E entre os juízes a questão provoca pontos de vista antagônicos. O porta-voz da majoritária e conservadora Associação Profissional da Magistratura (APM) considera que o juiz Bermúdez “atuou dentro das faculdades que lhe outorga o direito como diretor da audiência”. “Quem deveria tomar essa decisão era ele, independentemente de que pareça ou não de acordo com a realidade. Em relação à advogada, afirma: “Uma coisa são nossos hábitos, nossa religião, nossos interesses ou nossos costumes, que podemos fazer valer em nossa esfera privada e na sociedade civil. O que não podemos fazer é impô-los no espaço do puramente público, como é a sala de um tribunal”.

Marcelino Sexmero, porta-voz da moderada Associação de Juízes Francisco de Vitoria, admite a dificuldade de interpretar uma regulação tão frouxa sobre a indumentária dos letrados como a que estabelecem o Estatuto da Advocacia e o Regulamento do Protocolo do Conselho Geral do Poder Judiciário. O porta-voz considera que, em princípio, “parece desproporcional impedir o direito de defesa”, que é um direito fundamental.

Mas ao mesmo tempo crê que a letrada “deveria levar em conta que na sala existem normas”. “Da mesma maneira que os homens não usam chapéu, é possível que as mulheres não possam usar lenço.” Sexmero, no entanto, acredita que nesses casos é preciso fazer um exercício de “possibilismo” e dá um exemplo: “Nos meus anos de exercício se me apresentou algum advogado sem toga ou vestido não muito adequadamente. Nesses casos, o que faço é não permitir que permaneçam na tribuna, mas permito que continuem com a defesa do banco, junto a seu cliente”.

“Diante de um tribunal ou durante uma audiência, nem todo mundo pode estar como quiser”, afirma por sua vez Miguel Ángel Gimeno, da progressista Juízes para a Democracia, que considera que a decisão de Bermúdez “não é de fácil solução”. Depois acrescenta: “Na minha opinião, seria preciso confrontar o direito fundamental de defesa do artigo 24 da Constituição com a obrigação de vestir-se de determinada maneira, creio que prima o direito de defesa”.

Advogados e especialistas, em todo caso, pedem uma normativa clara por parte do legislador, que estabeleça as regras do jogo; que não seja cada juiz quem decida, segundo seu critério pessoal, se judeus, católicos, muçulmanos ou protestantes podem usar livremente símbolos religiosos em seus trabalhos.

Não está claro o que vai acontecer. O Ministério da Justiça prepara a próxima lei de liberdade religiosa e o ministro Caamaño se pronunciou na quarta-feira contra regulamentar o uso do véu e outros símbolos religiosos nos tribunais. Considerou preferível deixar a questão ao critério de cada juiz, como até agora.

Fonte:El Pais

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