Provar a veracidade da Bíblia ou mesmo a inspiração que permeia sua composição nunca foi muito difícil para as igrejas cristãs. Mesmo com o surgimento de crenças, teorias e ciência a pergunta “Quem escreveu a Bíblia” tem ecoado mais alto.

Há pouco mais de 3.500 anos, em algum lugar do deserto egípcio, um homem decidiu colocar no papel – ou melhor, em seu precursor, a planta chamada papiro – uma história que vinha sendo transmitida oralmente há gerações. Inspirado por Deus, Moisés pegou pena e nanquim e começou a contar a história de um homem próspero, que teve sua fé duramente provada, mas não se rebelou contra seu Senhor. Aprendeu a confiar nele e recebeu, no final, em dobro, tudo que havia perdido. O relato de Jó era apenas o início de uma história fantástica que levaria mais 1.600 anos para ser completada. Nesse tempo, 40 diferentes autores, de humildes agricultores e pescadores a renomados reis, escreveram nas mais diversas circunstâncias uma obra que reúne 66 livros, com uma harmonia tão grande que dá a impressão de que todos os seus escritores viveram na mesma época e no mesmo lugar. Sem a Bíblia, o mundo seria muito diferente deste que conhecemos hoje. Foi ela que trouxe as bases das três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Ela também moldou a cultura e os valores do mundo, universalizando direitos e promovendo a liberdade de consciência e de expressão. Mas para seus primeiros autores, essencial mesmo era transmitir as leis de Deus aos homens, assim como a história de seu povo escolhido. Apesar de todo o conteúdo já estar pronto há quase 2 milênios, os recentes conflitos entre israelenses e palestinos nas terras dos patriarcas bíblicos mostram que, pelo jeito, a saga da antiga tribo de nômades comandada por Abraão está longe de terminar. Assim como as polêmicas que envolvem a Bíblia. A última delas dá conta que quase todos os acontecimentos narrados em suas páginas nunca aconteceram, não passam de ficção. Uma idéia que conquista cientistas mundo afora, ganha as capas de importantes publicações, pesados investimentos para a gravação de programas de televisão e transforma livros em best-sellers. Será verdade? Nessa outra saga, o ponto final ainda pode estar muitos capítulos à frente.

“Quem escreveu a Bíblia?” é o tipo de pergunta com a qual as igrejas cristãs sempre se viraram muito bem. Mesmo com crenças, teorias e descobertas científicas que se sucederam ao longo dos séculos. Apesar de não existir nenhum texto original, saído do próprio punho de seu autor, a tradição judaico-cristã e os pesquisadores bíblicos têm vários elementos para acreditar, por exemplo, que Moisés é o autor dos cinco primeiros livros das Escrituras, o Pentateuco. Concordam que em sua composição dos livros foram usadas diferentes fontes: além das histórias orais, revelação divina, até documentos mais antigos, como leis, genealogias e poesias. Claro, nem sempre os textos foram redigidos por uma única pessoa. É o caso do próprio Moisés. Como poderia ele falar de sua própria morte em Deuteronômio? Provavelmente, coube a seu sucessor, Josué, terminar o relato. Mas basta uma análise rápida das Escrituras para descobrir que esse expediente é muito comum. Outro que não pode ter escrito integralmente sua obra é o profeta Samuel, pois o primeiro de seus livros já conta eventos que se passaram tempos depois de seu falecimento. Como tantas outras obras da Antiguidade, a Bíblia também contou em sua redação com secretários, sacerdotes e escribas anônimos. Nada que pudesse contestar seu caráter, conteúdo e inspiração. Pelo menos, até pouco tempo.

Nos últimos anos, diversos estudiosos têm escrito obras de grande sucesso e conquistado importante espaço junto ao público com críticas que lançam dúvidas sobre a tradição religiosa. Para eles, a Bíblia – uma palavra usada no singular, mas que vem do plural grego “livros” -, surgiu a partir da costura de diversas lendas que corriam na Terra de Canaã, região que hoje corresponde a Líbano, Palestina, Israel e partes da Jordânia, do Egito e da Síria. Esses estudiosos acreditam que Canaã não foi um Estado dominado pelos hebreus, mas uma “terra de ninguém”, pela qual lutavam diversas tribos, cada uma com suas lendas e cultura. Entre os séculos 10 e 8 a.C., logo após a unificação dos hebreus por algum de seus líderes – poderia até ser Davi, dizem eles, mas não um grande rei como contam as Escrituras -, teriam sido escritas as primeiras versões, com grande parte do conteúdo de Gênesis e Êxodo. Mas já ali dois autores diferentes teriam sido usados.

“Havia dos épicos diferentes que tratavam da criação do mundo. O das tribos do sul, de Judá, chamavam Deus por seu nome, Yahweh ou Javé. O das tribos ao norte adotava um título mais formal, Elohim. Para resolver o problema, o editor do Gênesis contou a história dos eloístas no primeiro capítulo e dos javistas, no segundo. São duas tradições diferentes. Mais religiosos, os eloístas falavam que Deus criou o mundo em seis dias, descansando no sétimo. O homem apareceria ao lado da mulher e de outros animais no sexto dia. Mas no texto javista, Deus cria o mundo em um único dia. Depois, forma o homem que teria papel ativo para formar os elementos do mundo. Até a mulher surge depois, na história”, escreve a historiadora norte-americana Karen Armstrong em seu livro A Bíblia (Jorge Zahar Editor).

Segundo ela, seria a primeira de muitas edições do texto sagrado. Para Armstrong, eventos como o Êxodo nunca existiram. Porém, como Canaã estaria sob domínio egípcio, era necessário criar um relato que inspirasse o povo a lutar contra essa dominação. Por isso, quando a Bíblia conta que as leis mosaicas foram encontradas no templo, durante o reinado de Josias, por volta de 622 a.C., na verdade, inventaria um relato para explicar o surgimento de leis escritas na oportunidade para tornar viável a administração do reino. “Moisés transmitiu os ensinamentos de Deus apenas oralmente. Quem escreveu textos como Deuteronômio foram os sacerdotes dos tempos de Josias, que chamamos de deuteronomistas”, sustenta Armstrong.

Em 589 a.C., Jerusalém foi invadida e arrasada pelos babilônios. A maior parte da população foi aprisionada e levada para o atual Iraque. Quando os hebreus voltaram para sua terra, décadas depois, tinham sua fé transformada, de acordo com a teoria de Armstrong. Antes eles era politeístas e adoravam vários deuses, sendo Yahweh apenas mais um entre tantos outros como Baal, Astarote e El. Agora, após contato com os persas, Yahweh era o único Deus. Isso precisava ficar claro e, sob o comando do sacerdote Esdras, os textos foram novamente editados e enriquecidos. Teriam surgido ali os Dez Mandamentos e leis rígidas, como a proibição do casamento de hebreus com outros povos. Outras passagens, continuaram refletindo o clima de séculos de guerras com assírios e babilônios. Em vez de Deus, os autores do Antigo Testamento seriam influenciados por essa atmosfera de ódio e estariam apenas extravasando suas angústias.

Saci Pererê

Para o arqueólogo Rodrigo Pereira Silva, professor do Centro Universitário Adventista (Unasp) em Engenheiro Coelho (SP) e autor de livros como Escavando a Verdade (Casa Publicadora Brasileira), essa tese é engenhosa, mas carece de qualquer base histórica para comprová-la. “Trata-se de uma fantasia, como a do Saci Pererê, mas que tem ganhado apoio de muitos liberais em faculdades de Teologia, mesmo que destacados pesquisadores já tenham declarado sua nulidade, por carecer de bases sérias, e descobertas sucessivas desmontarem seus ensinos”. Segundo Silva, o Método Crítico Histórico usado por estudiosos como Armstrong não tem nada de novo.

Ele existe na Europa desde o século 18 e pressupõe que livros como a Bíblia sejam puramente humanos, fruto de culturas e não inspirados por Deus. Suas narrativas viriam de lendas, ideologias e impressões pessoais. Para que funcione, milagres e intervenções sobrenaturais não podem ser levados em conta, mas precisam ser interpretados apenas como parábolas, sem qualquer historicidade. “No caso do Novo Testamento, eles já nem falam mais em Evangelho de João mas em Evangelho da Comunidade Joanina, escrito por seguidores ou simpatizantes que teriam aperfeiçoado as idéias de João. Assim, os ditos de Cristo seriam teses sociais de interesse da comunidade e, para validá-las, os autores teriam criado histórias de Jesus defendendo tais doutrinas. Se isso fosse verdade, a fé não passaria de uma fantasia. Uma história, como diria Shakespeare, sem sentido e contada por um bando de loucos”, afirma Silva.

Com participação em escavações em Israel, Espanha, Sudão e Jordânia, ele defende que há muitos elementos garantindo a veracidade do que a Bíblia conta. A começar pelos relatos como o da criação ou de um dilúvio universal. Para tanto, é necessário apelar para testemunhas. “Uma pessoa sozinha pode mentir ou se equivocar descrevendo algo que não aconteceu. Mas, e quando várias pessoas, sem contato direto entre si ou com os depoentes, afirmam basicamente a mesma coisa?”, pergunta Silva. Transferindo o raciocínio para o Gênesis, se a humanidade tivesse um ancestral comum chamado Adão, seria de se esperar que seu nome estivesse no topo das mais antigas genealogias. E, quando se analisa os mais antigos registros escritos da humanidade, produzidos no terceiro milênio antes de Cristo na Mesopotâmia e no Egito, descobre-se algo mais que semelhança.

Em milhares de tabletes cuneiformes escavados nessas regiões, os arqueólogos descobriram histórias bastante parecidas com a Bíblia. Todas falam sobre a criação e desobediência de um casal humano que perde o paraíso; a maldição que se seguiu, trazendo morte aos habitantes da Terra; um fratricídio que marcou o início da história humana; a destruição do mundo por um dilúvio; a morte de quase todos, a não ser os que foram preservados pelos deuses; e uma confusão de idiomas que espalhou os homens. Esses antigos documentos chamam o ancestral humano de Adamu, Adime, Adapa, Alulim,Alorus, Atûm, Adumuzi e outros. Variações bem possíveis de Adão, em hebraico ‘Adam.

Poderia ser coincidência se essa tradição estivesse restrita ao Antigo Oriente, mas elas eram praticamente universais. Ao norte de Calcutá, na Índia, o povo Santhal teve uma antiquíssima tradição que conta que um Deus chamado Thakur Jiu criou o primeiro homem do barro e deu-lhe o nome de Haram. Depois criou a mulher e ambos foram colocados num jardim paradisíaco, o Hihiri Pipiri. Ali, um ser sagaz chamado Lita fez cerveja de arroz e convenceu o casal a desobedecer as ordens divinas e beber o líquido. Em seguida, eles dormiram e quando acordaram perceberam que estavam nus.

Entre os antigos sumérios surgiu um texto chamado Épico de Gilgamesh. Como na Bíblia, esse texto fala sobre uma enchente que devasta o mundo. Algumas pessoas se salvam construindo um barco. “Dizer que o relato bíblico é uma cópia simplificada desses mitos é outro grande equívoco que cometem os adeptos do Método Crítico Histórico. Já foi provado que, naquela região, relatos podem surgir a partir do acréscimo feito a lendas e outras histórias, nunca numa simplificação delas. Podemos explicar a diferença entre os relatos do Gênesis e os demais devido ao monoteísmo, que foi perdendo sua força ao longo do tempo em outras culturas, devido à queda do ser humano. Mas toda a base comum revela que alguma coisa assim provavelmente aconteceu mesmo”, destaca o professor Rodrigo Silva.

Babilônia

Apesar de não ter sido feita nenhuma grande descoberta que comprove o êxodo israelita pelo deserto do Sinai, também não é possível dizer que ele nunca ocorreu. Provas ainda podem ser encontradas, como as que revelaram a existência da Babilônia e de Nabucodonosor. No século 18, o racionalismo alemão atacava a Bíblia, usando o fato de que ninguém descobrira nada sobre a cidade, como motivo para dizer que as Escrituras a haviam inventado. Os defensores dessa idéia sofreram um baque quando o arquiteto e arqueólogo alemão Robert Koldewey desenterrou Babilônia das areias da colina de Hillah, no atual Iraque, comprovando seu gigantesco tamanho, tal como dizia a Bíblia.

Depois, em 1938, um dos mais famosos e polêmicos livros da época, Pseudo-Ezekiel and the Original Prophecy [O Falso Ezequiel e a Profecia Original], do pesquisador C. C. Torrey, da prestigiada Universidade de Yale, que desacreditava Nabucodonosor, o cativeiro babilônico e o retorno dos judeus sob o governo de Ciro, foi desmentido com a descoberta da antiga cidade de Laquis, no sítio arqueológico de Tell Duweir, situado entre Hebrom e Ascalom. Na fortaleza, encontrou-se provas em pedaços de cerâmica, dos acontecimentos relatados no livro do profeta Jeremias e dos ataques de Nabucodonosor contra a cidade.

Quanto aos hebreus terem sido cativos no Egito, as evidências falam por si próprias. Desenhos ornamentais encontrados num dos templos de Karnac, em Tebas, mostra um escravo siro-palestino, ou seja, hebreu, sendo açoitado pelo faraó. Além disso, linguístas encontraram raízes egípcias no nome de Moisés. Também a fabricação de tijolo com o barro do rio misturado com palha só poderia ser descrito por quem viveu no país naquele período. Em Jerusalém, não se faziam tijolos. As construções eram de pedra. Na Babilônia, embora fabricassem tijolos, as técnicas eram muito mais avançadas, usando, inclusive, fornos com altas temperaturas que dispensavam a secagem à luz do sol. Seria muito difícil para o escriba descrever uma situação que não estivesse acostumado a ver.

“Quando se trata de analisar documentos bíblicos, a tendência dos liberais é empurrar a autoria dos textos séculos à frente. Assim, dizem que o Antigo Testamento só começou a ser escrito por volta do século 8 a.C. e o Novo Testamento, no final do século 1 ou começo do 2 d.C.. Isso também é uma maneira de acabar com o elemento profético das Escrituras, já profecia dita depois de um acontecimento não tem valor”, explica o pastor presbiteriano Alderi Souza de Matos, professor do Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, em São Paulo (SP), e autor de A Caminhada Cristã na História (Editora Ultimato).

O livro de Números é um caro exemplo dessas tentativas. Para estudiosos como Karen Armstrong, seu conteúdo não poderia ter sido escrito antes do cativeiro babilônico. Porém, um pequeno adorno de prata com letras hebraicas, descoberto em um túmulo do vale de Hinom, pode colocar por terra essa teoria. O artefato foi datado em, no mínimo, 650 anos antes de Cristo, muito antes do exílio judeu, e traz a benção sacerdotal de Números 6:24 a 26, inclusive com o nome de Deus, Iahweh, escrito em três linhas. O amuleto é de uma época em que os descendentes de Davi ainda estavam no poder, durante o Primeiro Templo, e mostra que o texto já era conhecido do povo. Aliás, uma porção que, segundo os críticos da historicidade da Bíblia, não poderia ser produzido sem a experiência do cativeiro.

Os 72 sábios

Cerca de 400 anos antes de Cristo, todos os textos do Antigo Testamento já estavam prontos. Ficaram de fora apenas os chamados apócrifos, textos com ensinos heréticos e cuja autoria não era confirmada. Até então, as Escrituras tinham sido escritas em duas línguas: a maior parte em hebraico e alguns trechos de Esdras, Daniel e Jeremias em Aramaico, um dialeto próximo, surgido a partir de influência assíria e babilônica. Entre o terceiro e segundo séculos antes de Cristo, a forte presença judaica em Alexandria, no Egito, motivou a primeira tradução completa das Escrituras judaicas. Como a maioria dos judeus de lá já não falava mais o hebraico, decidiu-se traduzir os textos para o grego, o inglês daquele tempo. Conta uma antiga lenda que a tradução foi feita por 72 sábios, por isso, levou o nome de Septuaginta. Se essa história é real ou não, ninguém sabe, mas a versão grega mostraria toda sua importância anos mais tarde, principalmente para os cristãos. Quando fazem citações do Antigo Testamento, boa parte dos escritores do Novo, entre eles o apóstolo Paulo em suas cartas, faz uso das Escrituras gregas.

O idioma grego, para ser mais exato, seu dialeto popular koiné, acabou sendo escolhido para contar a história do jovem judeu que mudaria o mundo nos 2 mil anos seguintes: Jesus de Nazaré. Ele mesmo, como Sócrates, Buda e outros pensadores de renome, não deixou nada escrito. Coube a seus seguidores contar sua história. Não na forma de uma biografia, no sentido estrito da palavra. Muito menos na invenção de uma obra lendária, que pudesse enaltecer os grandiosos feitos de seu personagem principal, como acontecia regularmente com aquelas que falavam dos imperadores romanos. Embora tratassem de personagens reais, o conteúdo rasgava elogios aos protagonistas, escondendo erros e fraquezas.

Com Jesus, isso não acontece. O novo gênero literário criado para falar de sua vida, o evangelho, termo grego que significa “boa-nova”, conta os milagres, ensinamentos e procura mostrar que Jesus era o Messias esperado. Mas não mascara nem esconde as confusões causadas por suas palavras e o escândalo provocado por sua vergonhosa morte, como um criminoso, pendurado em uma cruz, talvez a mais terrível forma de martírio naquele momento. “Nenhum teólogo com intenção de criar uma religião falaria disso, o que nos dá certeza quanto à fidelidade histórica dos documentos”, afirma o pastor Russell Shedd, considerado o mais destacado especialista nas Sagradas Escrituras no Brasil atualmente.

O primeiro a escrever seu Evangelho teria sido Marcos, mas este não foi o começo da literatura cristã. Especialistas acreditam que, logo após a morte e ressurreição de Cristo e atendendo às ordens de ensinar suas palavras, os discípulos tenham preparado uma coletânea com os ditos de Jesus. Esse poderia ser o documento que os historiadores chamam de Q (abreviação da palavra quelle, “fonte” em alemão) e que teria servido de base para os textos de Mateus, Marcos, Lucas e para algumas cartas de Paulo. Também resolveria o depoimento dado por um certo Papias, bispo de Hierápolis no século 2, que teria sido secretário do apóstolo João e escrito o evangelho por ele ditado: “Mateus escreveu primeiramente em hebraico os oráculos do Senhor e cada um os interpretou como pode”.

A partir do ano 34, com a morte de Estevão e a perseguição judaica contra a Igreja, surgem dois fortes partidos no meio cristão. Os judaizantes sentiam-se ainda parte integrante do judaísmo e, por isso, tentavam obrigar os gentios a adotarem os ritos de iniciação da religião, como a circuncisão. Os liberais, por sua vez, dispensavam as cerimônias. As disputas foram árduas até, pelo menos, 66, quando iniciou-se a insurreição judaica contra a ocupação romana. Os cristãos fugiram em massa para a cidade de Pela e de lá receberam quase descrentes as notícias sobre a destruição do templo, poucos anos depois. Tudo isso, culminaria com o afastamento definitivo do cristianismo do judaísmo clássico.

Nesse tempo, para consolidar a posição cristã no mundo gentílico, Paulo escreveu suas cartas. A primeira foi destinada aos tessalonicenses, no ano de 51. A última, a Tito, provavelmente em 65. Ainda que muitos duvidem que Paulo tenha sido o autor de todas, mesmo que tenha usado secretários para redigir algumas delas, o fato é que muitas de suas correspondências também se perderam. O apóstolo teria escrito cinco cartas aos coríntios. Apenas duas delas foram preservadas.

Por volta de 63 ou 64, finalmente surge o primeiro Evangelho, o de Marcos. “Marcos tornou-se o intérprete de Pedro e escreveu acuradamente tudo o que ele lembrava. Contudo, não foi na ordem exata que ele relatou os ditos e feitos de Cristo. Pois ele não ouviu nem acompanhou o Senhor pessoalmente. Mas esteve com Pedro e proveu sem erros as instruções necessárias, sem o intento de fazer uma narrativa regular dos ditos do Senhor”, escreveu Papias. Eram tempos de duras perseguições promovidas contra os crentes em Roma por Nero e talvez fosse objetivo dos discípulos preparar a Igreja para os tempos mais difíceis que chegavam.

Entre 66 e 68, Paulo é encarcerado por Nero. Até para prover sua defesa, como precisava de um texto mais organizado, pede a Lucas que prepare seu Evangelho. Médico e estudante das leis, quase um jurista, para Lucas a tarefa não seria complicada. Para realizá-la, é possível que tenha usado como base o texto de Marcos, a fonte Q e entrevistas com os apóstolos e experiências de suas viagens a Jerusalém. Mas ele não para aí. Lucas também escreve Atos dos Apóstolos, com um texto pouco mais apressado que o Evangelho, no qual descreve os primeiros anos da Igreja cristã e, em especial, o ministério de Paulo. O final abrupto pode ser explicado pelo momento que o texto foi escrito, antes da segunda prisão e execução do apóstolo, ou mesmo pelo seu martírio.

Apesar de ser mais difícil de precisar, para os estudiosos, Mateus também escreve o Evangelho nesse tempo. Seu texto é igualmente redigido em grego, mas sinaliza a ruptura definitiva com o judaísmo. Os três documentos são conhecidos hoje como sinópticos, ou aqueles que têm o mesmo olhar.

Com a morte de Pedro e Paulo e as muitas perseguições, a partir dos anos 70, a Igreja sofre uma espécie de crise missionária e teológica. Há um silêncio no período até o ano de 96, quando o agora idoso apóstolo João produz, primeiramente, o Apocalipse, ainda exilado na ilha de Patmos. Com a morte do imperador Domiciano, João é anistiado por seu sucessor, Nerva, e vai morar em Éfeso. Ao chegar lá, ele encontra a igreja dividida. A luta é provocada por várias correntes heréticas e a congregação está a ponto de se dividir. Especialmente por causa dos gnósticos, que não aceitavam a ideia de que Cristo havia encarnado para salvar a humanidade. Entre aqueles movimentos estavam o cerintismo, que negava a divindade de Jesus, e o joanismo, que acreditava não existir nada no nazareno que o colocasse acima de outros grandes mestres da história e se dizia seguidor de João Batista, um profeta ainda mais importante que Cristo. Sentindo seu dever de salvaguardar a fé, João produz depois de alguns dias de jejum e oração seu Evangelho e as cartas que levam seu nome. Segundo testemunho de Irineu, bispo de Lion, o discípulo amado viveu até o sétimo ano de Trajano, o ano de 104.

Acréscimos e castigos

Atualmente, existem cerca de 5.500 manuscritos do Novo Testamento espalhados em museus e bibliotecas do mundo inteiro. Eles estão na forma de rolo, pergaminhos, códices ou até mesmo fragmentos minúsculos, como o Papiro 52, que está n Biblioteca de Rylands, em Manchester, na Inglaterra, e não tem mais do que 6 X 8 centímetros. Apesar do elevado número, não há sequer dois deles examente iguais, tão grande é variedade textual. Por que isso acontece?

Em partes, isso se deve ao trabalho dos copistas. Até 1455, quando Gutenberg inventou a prensa de tipos móveis e publicou pela primeira vez uma edição completa da Bíblia, cada exemplar era feito à mão. As cópias demoravam meses para ficar prontas e eram caríssimas. Por desconhecimento de termos hebraicos e depois gregos, quem copiava estava sujeito a erros e alterações. Cópias adulteradas propositalmente eram mais difíceis, mas não impossíveis. Pior eram os escritos que surgiram a partir do segundo século e que traziam ensinos heréticos com o nome dos apóstolos, para tentar adquirir credibilidade. Não por menos, o escritor do Apocalipse fez uma severa e profética advertência: “Se alguém fizer acréscimos às páginas deste livro, Deus o castigará com as pragas descritas aqui”.

O problema foi contornado em partes com o estabelecimento do cânon (no grego, “vara reta de medir”) do Novo Testamento, ou seja, a lista dos 27 livros que poderiam ser chamados de escrituras. Mas isso não se deu de uma hora para outra e nem tão facilmente. Foi um processo lento e contínuo, que tomou contornos definitivos em meados do século 4. A confirmação se deu em 397, no Concílio de Cártago.

Pouco tempo depois, surgiria outra novidade que poderia ajudar a popularizar a Bíblia. Em 406, sob as ordens do papa Damaso, Eusebius Hyeronimus, que entraria para a história como Jerônimo, foi enviado a Jerusalém para aprender hebraico e traduzir os textos sagrados para o latim. Uma tarefa nada fácil: durou 17 anos e, no final da vida, Jerônimo ainda a entregou incompleta. Surgia a Vulgata, a Bíblia latina, que até hoje é o texto oficial da Igreja Católica. Com sete livros a mais no Antigo Testamento (Tobias, Judite, Primeiro e Segundo Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico e Baruc), acréscimos nos livros de Ester e Daniel e um Salmo a mais, ela é um pouco maior que as Escrituras judaicas e protestantes.

O problema é que a “versão do povo” durante mil anos foi a única aprovada pelo catolicismo. Como a grande maioria não sabia ler latim e depois nem sequer entendê-lo, a Bíblia se tornou uma grande desconhecida. Nem mesmo a classificação temática ajudou. A ordem do Antigo Testamento não é a mesma das Escrituras hebraicas. Tampouco o sistema de divisão em capítulos e versículos. Em 1231, em Paris, aparecia a primeira Bíblia dividida em capítulos. Obra de Stephen Langton, que se tornaria bispo de Canterbury. A divisão por versículos seria feita somente em 1550, por Robert Stevens.

A Inglaterra foi a primeira nação a ter a Bíblia em sua própria língua. Em 1380, John Wycliffe e seus associados de Oxford traduziram as Escrituras do latim para o inglês. Mesmo com a oposição tenaz de Roma, eles mobilizaram paroquianos pobres do país para irem pelas ruas pregando a Palavra e lendo o texto para o povo em seu próprio idioma. O esforço valeu o título de “Estrela da Manhã da Reforma”. Mas também atraiu a ira papal sobre Wycliffe depois de sua morte em 1384. Por ordem do comando católico, sua sepultura foi aberta, o esqueleto, queimado e as cinzas lançadas ao rio Swift.

Em 1522, foi a vez do reformador Martinho Lutero enfrentar a fúria romana para lançar a tradução que fez direto do hebraico e do grego para o alemão. Agora, com a prensa a seu lado, massificou a Bíblia e a tornou a primeira obra da moderna literatura alemã. Pouco depois, em 1535, outro britânico, William Tyndale, ousou desobedecer Roma e publicou o Novo Testamento traduzido do grego para o inglês. Protestante e bastante ligado a Lutero, Tyndale traduziu a palavra grega ecclesia como “congregação” e não como “igreja” e selou seu destino antes mesmo de terminar a tradução do texto hebraico: no ano seguinte, acabou estrangulado e queimado como herege. Até hoje seu trabalho é referência para todas as versões em língua inglesa do Livro Sagrado.

A Bíblia chegou ao português finalmente em 1753 e pelas mãos de um protestante: João Ferreira de Almeida. Desde então, muita coisa aconteceu, mas a versão Almeida ainda continua sendo a mais popular entre os evangélicos brasileiros. A ponto de ganhar uma tradução renovada: a Almeida Século 21. Entre os católicos, a versão oficial é uma tradução coloquial feita pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Mas ninguém mais é obrigado a adotá-las. Existem Bíblias para todos os gostos e bolsos. Das mais simples àquelas de estudo, totalmente coloridas. Com traduções literais ou mais livres. Em 2007, o Brasil passou a ser o maior produtor mundial de Bíblias, com mais de 11 milhões de unidades. A maior parte dessa produção é devida à Sociedade Bíblica do Brasil, que em 60 anos já distribuiu mais de 65 milhões de exemplares do livro no país e 4 bilhões de Bíblias e porções pelo mundo.

Com tanta história e diversidade, é inevitável: as modernas traduções bíblicas merecem confiança? Afinal, com tantas traduções e alterações, o texto original certamente se perdeu ao longo dos anos, certo? Não! A verdade não é essa. Estudos recentes do Novo Testamento revelaram algo impressionante: existe a certeza de que 99,5% do texto é confiável. Das 20 mil linhas, apenas há questionamentos em 40 e referem-se a elementos não essenciais à fé, como é o caso dos nomes Gadara ou Gerasa, no Evangelho de Marcos. Mesmo quando há algum acréscimo, como no caso de 1 João 5:7 que fala sobre “três que dão testemunho no céu”, as Bíblias modernas trazem o texto entre colchetes e a observação de que o trecho não se encontra nos manuscritos mais antigos.

Para efeito de comparação, na Ilíada de Homero, das 15.600 linhas, 764 são questionadas. E no Mahabarata, o livro sagrado dos hindus, com pouco mais de 120 mil linhas, 26 mil são postas em dúvida. Não há nem comparação com o percentual bíblico, mas ninguém duvida que está lendo um texto do historiador grego ou, se for hindu, abandona sua fé.

No caso do Antigo Testamento, não é diferente. Em 1947, a descoberta de um conjunto de manuscritos antigos em cavernas na região do Mar Morto agitou a comunidade acadêmica internacional e as igrejas cristãs. Entre centenas de rolos havia muitas cópias de textos das Escrituras hebraicas. Todas datando de cerca de 300 anos antes de Cristo, mil anos mais antigas que as cópias então conhecidas. Apenas o livro de Ester não foi encontrado. Ao fazer a comparação com o texto atual, a maior surpresa: eram praticamente idênticos. As únicas diferenças de livros, como os do profeta Isaías, eram conjunções como o “e”. Mais uma vez, a Bíblia se mostrava um livro diferente. Uns acreditaram tratar-se de mera coincidência. Outros, da mão de Deus a proteger a idoneidade de sua Palavra. De um jeito ou de outro, fica a certeza: tratam-se das mesmas Escrituras que passaram pelas mãos de Jesus, aquele que disse ser essa história a verdade.

Fonte: Revista Eclésia

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