Hoje trago um tema infelizmente atual, que surge nas entranhas da psique coletiva: a guerra. Não como fenômeno político, mas como sintoma de uma humanidade em fissura, tal como Elis Regina cantou em 1980: Alô, alô marciano / Aqui quem fala é da Terra / Pra variar, estamos em guerra. Quase meio século depois, a letra dessa música soa como um diagnóstico sobre o nosso presente e nosso futuro: o conflito Israel-Irã, Rússia-Ucrânia, com seu cortejo de destruição, repete a mesma pulsão de morte que Freud tão bem mapeou.
Tânatos no palco global: a pulsão que não silencia
Freud, em Por que a Guerra? (1932), apontou a guerra como expressão da pulsão de morte (Tânatos) – força primordial que busca a aniquilação do outro para afirmar o eu. Hoje, vemos essa pulsão vestida de geopolítica: o narcisismo das pequenas diferenças, mecanismo que transforma divergências culturais ou religiosas em ódio mortal, alimenta conflitos como o do Oriente Médio e do Leste Europeu, além de atentados terroristas e massacre de cristãos. A retórica belicista, seja de governos ou de aiatolás pra atolar, como ironiza a canção, revela o gozo inconsciente na destruição, mascarado por discursos de soberania ou fé. Ou seja, quanto mais parecidos dois grupos são, mais violentamente podem se odiar por pequenas diferenças. É o incômodo com o que é quase igual, mas não é idêntico, que alimenta a hostilidade e o gozo destrutivo.
A psicanálise nos lembra: a guerra é um retorno do recalcado civilizatório. Quando instituições frágeis (como a ONU) falham em conter a agressividade, a cultura down in the high society [“em baixa na alta sociedade”] desaba, citando Elis, e o primitivo animalesco surge com bombas.
O luto coletivo e a cratera do desamparo
Freud, em Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915), alertou que a guerra expõe nossa ilusão de imortalidade, lançando-nos ao desamparo. Os corpos mutilados na Faixa de Gaza, as crianças israelenses sequestradas, estupradas e explodidas em fornos micro-ondas, as crianças ucranianas sequestradas, os refugiados ucranianos, todos são fragmentos de um luto global que a psicanálise chama de melancolização da sociedade. Como escrito em Desigualdades, Desamparo e Solidariedade na Clínica On-line (MOREIRA, 2022), vivemos um luto singular e coletivo que exige cura compartilhada.
A música de Elis expõe essa ferida com ironia cortante: Pra variar, estamos em guerra, a crise tá virando zona, tem muito rei aí pedindo alforria. A guerra não destrói apenas cidades, destrói o holding psíquico que nos sustenta, transformando o mundo em uma zona de desamparo.
A high society do ódio: narcisismo e cinismo
Elis Regina critica a elite que dança sobre ruínas: Tá cada vez mais down in the high society. Freud diria que essa é a face sádica e irracional do superego cultural: líderes instrumentalizam a pulsão de morte em projetos bélicos, enquanto civis regridem a posições voyeurísticas, consumindo tragédias como espetáculo, ambos alimentados pela mesma economia psíquica de negação e gozo.
Aqui, a ponte com o psicanalista pós-freudiano Félix Guattari é vital: em As Três Ecologias, ele fala da dessubjetivação capitalística, que transforma o sofrimento alheio em commodity. Memes belicistas, discursos de ódio digitalizado e a banalização da morte são sintomas dessa esquizofrenia social.
Por um direito à vida: da pulsão à sublimação
Freud não era pessimista. Em Por que a Guerra?, propõe que o direito e a cultura podem sublimar a agressão. Afinal, se a pulsão de morte é inerente ao humano, sua energia pode ser redirecionada. A arte, como a música de Elis, é uma trincheira de resistência. No cenário atual, isso se traduz em: exigir mediações internacionais sérias para o cessar-fogo; amplificar vozes minoradas, como as de judeus antissionistas e palestinos pacifistas; transformar o luto em luta, tal como propõe a psicanalista Ana Cleide Moreira (2022): Chamam-nos minorias, mas somos multidões!
Do alô, alô, marciano ao alô, alô humanidade
A guerra é um pacto falido com Tânatos ,mas se, como dizia Freud, o que está recalcado retorna, que retorne também nossa capacidade de empatia. Elis Regina, ao cantar Você não imagina a loucura / O ser humano tá na maior fissura, nos convoca a olhar para a cratera aberta em nossa humanidade.
Que a psicanálise nos lembre: toda guerra começa na psique, e é nela que a paz deve ser construída. Antes de falar com marcianos, precisamos falar com nós mesmos.
Leia também: Mísseis como falos: Uma leitura psicanalítica do poder e da destruição
Referências
BUTLER, J. Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
FREUD, S. Por que a Guerra? (1932). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas, v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, S. Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte (1915). In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do Desejo. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
LEE, R.; CARVALHO, R. Alô, Alô Marciano. Interpretado por Elis Regina. In: Saudade do Brasil. Rio de Janeiro: WEA, 1980. 1 faixa (4min04s).
MOREIRA, A. C. G. Desigualdades, Desamparo e Solidariedade na Clínica On-line. Psyché, v. 26, n. 2, p. 19-34, 2022. Disponível em: PEPSIC.