A psicanálise, ao explorar símbolos culturais, pode oferecer várias interpretações sobre figuras como o coelho da Páscoa, ainda que Sigmund Freud ou outros psicanalistas clássicos não tenham falado diretamente sobre esses símbolos específicos. No entanto, com base nos princípios psicanalíticos, pode-se especular sobre o significado e a função do coelho da Páscoa na cultura e nos indivíduos.
D.W. Winnicott, um pediatra e psicanalista britânico renomado, conceituou os objetos transicionais na psicanálise como elementos essenciais no desenvolvimento emocional das crianças, facilitando a transição do estado de dependência absoluta para a percepção de si mesmas como entidades independentes. Estes objetos, que variam de cobertores a coelhinhos de pelúcia, servem como pontes entre o self privado e o mundo externo, proporcionando segurança e conforto na ausência dos cuidadores primários. Além disso, Winnicott expandiu esse conceito para incluir tradições culturais como a do coelho da Páscoa, que funcionam de maneira similar ao reforçar a conexão individual com o coletivo e oferecer uma sensação de pertencimento, demonstrando a versatilidade dos objetos de transição em diversos contextos.
Por essa definição, o balbucio de um bebê e o modo como uma criança mais velha entoa um repertório de canções e melodias enquanto se prepara para dormir, incidem na área intermediária enquanto fenômenos transicionais, juntamente com o uso que é dado a objetos que não fazem parte do corpo do bebê, embora ainda não sejam plenamente reconhecidos como pertencentes à realidade externa. (WINNICOTT, 1975, p.12).
O conceito de objeto transicional, contudo, não se limita a itens físicos. Winnicott expandiu essa ideia para incluir fenômenos, atividades e até mesmo tradições culturais que desempenham um papel semelhante para indivíduos e coletividades. Ele sugere que, assim como o objeto transicional individual ajuda a criança a negociar a fronteira entre o self e o outro, os rituais e símbolos culturais funcionam de maneira semelhante em uma escala coletiva. Eles ajudam a mediar a relação entre o indivíduo e a sociedade, entre o interior subjetivo e o mundo exterior objetivo.
Presume-se aqui que a tarefa de aceitação da realidade nunca é completada, que nenhum ser humano está livre da tensão de relacionar a realidade interna e externa, e que o alívio dessa tensão é proporcionado por uma área intermediária de experiência (cf. Riviere, 1936) que não é contestada (artes, religião, etc). Essa área intermediária está em continuidade direta com a área do brincar da criança pequena que se “perde” no brincar. (WINNICOTT, 1975, p.28-9).
A ligação do individual com o coletivo, através de objetos transicionais winnicotianos, ocorre em vários níveis:
Sensação de Pertencimento e Identidade: Rituais culturais e tradições funcionam como objetos transicionais ao fornecer aos indivíduos um senso de pertencimento e identidade. Participar dessas práticas ajuda as pessoas a se sentirem conectadas a uma comunidade maior, reforçando laços sociais e culturais.
Navegação entre Espaços Privado e Público: Assim como o objeto transicional da infância ajuda a criança a manejar a separação da mãe e a desenvolver uma capacidade para estar sozinha, os objetos transicionais culturais ajudam os indivíduos a navegar entre o espaço privado de suas experiências interiores e o espaço público da vida social. Eles fornecem um terreno comum onde experiências privadas podem ser compartilhadas dentro de um contexto coletivo.
Manejo da Ansiedade e da Insegurança: Em tempos de incerteza ou mudança, rituais e símbolos culturais podem oferecer conforto e segurança, assim como o objeto transicional da infância. Eles proporcionam pontos de referência estáveis e previsíveis que ajudam as pessoas a lidar com a ansiedade e a insegurança.
Facilitação do Crescimento e da Mudança: Os objetos transicionais não apenas oferecem conforto, mas também facilitam o crescimento e a mudança ao permitir a exploração e a expressão criativa. No contexto coletivo, rituais e tradições podem ser adaptados e reinterpretados, permitindo que as comunidades evoluam e respondam a novas realidades.
Através desse prisma winnicotiano, pode-se ver como os objetos transicionais vão muito além dos brinquedos ou cobertores da infância, desempenhando um papel fundamental na forma como os indivíduos se relacionam com o mundo ao seu redor e encontram um equilíbrio entre o eu interior e a realidade externa.
Referência
WINNICOTT, D. O uso de um objeto e relacionamento através de identificações. In O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.