
“Onde houver trevas, que eu leve a luz”
(Oração atribuída a S. Francisco de Assis)
1. Psicanálise: a coragem de mergulhar nas sombras
Antes de vestir branco, Bergoglio enfrentou suas próprias trevas. Entre 1978 e 1979, em Buenos Aires, sob a ditadura, ele, então um padre jesuíta de 42 anos, deitou-se no divã de uma psicanalista judia. Durante seis meses, mergulhou em sessões semanais para esclarecer algumas coisas — uma jornada íntima em meio ao caos político. A psicanalista não apenas o ajudou a navegar os mares das crises pessoais, mas tornou-se uma interlocutora espiritual até o leito de morte dela, revelando um diálogo raro entre fé e inconsciente.
“Durante seis meses fui a casa dela (da psicanalista) uma vez por semana para esclarecer algumas coisas. Ela era médica e psicanalista. Estava sempre presente”, confessou ao sociólogo francês Dominique Wolton, numa das entrevistas para o livro de 432 páginas, citado pelo Guardian. “Depois, antes de morrer, ela ligou-me” para um “diálogo espiritual”. “Era uma boa pessoa”, conclui” (Para Francisco, 2017).
Essa experiência moldou seu pastoreio: a fé não é um analgésico para as feridas da mente, diria décadas depois.
Como Papa, transformou a Igreja em um hospital de campanha, defendendo avaliações psicológicas para seminaristas e acolhendo depressões e labirintos da psique. Numa entrevista ao psicólogo Salvo Noé, em um diálogo publicado no livro O medo como dom, Francisco destacou a necessidade de avaliação psicológica integral dos candidatos ao sacerdócio. Ele afirmou: “Ao iniciar um processo vocacional, é necessário avaliar de forma integral o modo de vida, o aspeto psicológico, as relações interpessoais da pessoa que deseja embarcar no caminho entrando no seminário”. O Papa reforçou que “é melhor perder uma vocação do que arriscar com um candidato inseguro”, vinculando essa avaliação à prevenção de comportamentos problemáticos, como abusos (VATICANO, 2023).
Sua abertura à psicanálise é existencial: ele sabe que a compaixão nasce quando reconhecemos nossas fraturas. “Deus habita até nas cicatrizes que escondemos”, ensina, numa época em que a saúde mental é tabu até nos altares.
Para Francisco, a rigidez dogmática é sintoma de medo – uma doença que paralisa jovens sacerdotes. Em Amoris Laetitia, citando o psicanalista John Bowlby, enfatiza o vínculo materno e a família concreta, longe de idealizações. A ordem jesuíta, com sua tradição de autoconhecimento, financiou terapias para seus membros, pavimentando esse caminho de cura.
2. Juventude: a revolução dos que sonham acordados
“Onde houver tristeza, que eu leve a alegria”
(Oração atribuída a S. Francisco de Assis)
“Um jovem que não protesta não me agrada”– a frase, dita no Brasil em 2013, é um hino à inquietude sagrada. Sua ligação com a juventude é psicoespiritual: ele entende que rebeldia e fé podem dançar juntas. “Sonhem com os olhos abertos”, insiste, como um avô que entrega aos netos não um testamento, mas uma semente. Sua defesa de uma Igreja inclusiva, onde o amor supera regras rígidas, ecoa Freud: “Precisamos amar para não adoecer”.
3. A utopia dos que se fazem pequenos
O Papa Francisco não é um revolucionário de slogans, mas de silêncios que falam alto. Sua espiritualidade é uma arte do encontro: com as mulheres invisibilizadas, com as minorias, com os rios agonizantes, com as perguntas sem resposta. Sua experiência no divã tornou-o um psicanalista da alma coletiva, ouvindo o que as palavras não dizem (das feridas dos imigrantes, aos traumas de uma Igreja em reforma).
Como São Francisco, ele acredita que é dando que se recebe — e por isso doa até sua própria imagem, trocando mitras por abraços. Sua herança é um convite para pisar na terra sagrada do outro, integrando psique e espírito. Em tempos de algoritmos e muros, ele nos lembra: a verdadeira paz nasce quando nos sentamos à mesa com os últimos, escutando, como ele fez em seu próprio divã, o gemido inaudito da humanidade.
Referências
PAPA FRANCISCO revela que teve sessões de psicanálise quando era mais novo. Público, 1 set. 2017. Disponível em: https://www.publico.pt/2017/09/01/mundo/noticia/ papa-francisco-revela-que-teve-sessoes-de-psicanalise-quando-era-mais-novo-1784120. Acesso em: 21 abr. 2025.
VATICANO: Seminário não é um refúgio para falhas psicológicas, alerta o Papa. Agência Ecclesia, 25 out. 2023. Disponível em: https://agencia.ecclesia.pt/portal/vaticanoseminario-nao-e-um-refugio-para-falhas-psicologicas-alerta-o-papa/. Acesso em: 21 abr. 2025.
FREUD, S. “Sobre o narcisismo: uma introdução”, in Obras completas, v. 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução de Paulo César de Souza. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-48.