Torcidas organizadas e a pulsão de morte: A autodestruição como identidade

A violência extrema e a exposição dos corpos nus das vítimas, por exemplo, podem ser vistas como uma tentativa inconsciente de "reduzir o outro a um estado primitivo", despojando-o de dignidade e humanidade.

Torcida em estádio de futebol (Foto: Canva Pro)
Torcida em estádio de futebol (Foto: Canva Pro)

As torcidas organizadas, fenômeno social carregado de paixão e pertencimento, também revelam aspectos sombrios da psique humana. À luz da psicanálise, esse comportamento coletivo pode ser analisado a partir do conceito de pulsão de morte (FREUD, 1920), que se manifesta na destrutividade voltada tanto para o outro quanto para si mesmo. A identificação grupal, tão necessária para o ego, leva os indivíduos a se dissolverem em um “nós” onde a agressividade é legitimada. O futebol, um campo de jogo simbólico, deveria canalizar essa energia de maneira sublimada, mas nas torcidas organizadas, frequentemente ocorre o contrário: a violência se torna um meio de afirmação da identidade. O ódio ao adversário, a rivalidade levada ao extremo e o prazer na destruição (do outro e do próprio corpo) indicam que a pulsão de morte encontrou terreno fértil.

Essa dinâmica autodestrutiva pode ser associada, na teoria freudiana do desenvolvimento psicossexual, à fase anal (entre 1 e 3 anos de idade). Durante essa fase, a criança experimenta a ambivalência entre controle e descontrole, prazer e frustração, retenção e expulsão. Freud descreve que a fase anal está ligada às primeiras exigências de disciplina e controle social, especialmente no treinamento esfincteriano. A agressividade pode surgir quando há frustração nessa relação, levando à formação de traços de personalidade obsessivos, destrutivos ou autodestrutivos. A retenção e expulsão das fezes simbolizam, metaforicamente, a relação entre domínio e submissão, prazer e desprazer. A pulsão de morte, conceito desenvolvido posteriormente por Freud (1920), embora não se restrinja a uma fase específica, encontra manifestações na fase anal, pois a criança, ao lidar com a tensão entre destruição e controle, pode desenvolver mecanismos de prazer na destrutividade, seja voltada para o outro (sadismo), seja para si mesma (masoquismo). Esse prazer inconsciente na destruição pode reaparecer na vida adulta em comportamentos autodestrutivos, compulsivos ou agressivos.

Nas torcidas organizadas, essa lógica se expressa de forma brutal. A violência extrema e a exposição dos corpos nus das vítimas, por exemplo, podem ser vistas como uma tentativa inconsciente de “reduzir o outro a um estado primitivo”, despojando-o de dignidade e humanidade. O ato de despir a vítima, expondo-a de maneira degradante, remete à fragilidade e ao desamparo infantil, simbolizando uma regressão à fase anal, onde o prazer é encontrado no controle sobre o outro, na sujeira e na degradação. A necessidade de não apenas derrotar o adversário, mas humilhá-lo completamente, destruindo sua identidade simbólica, reflete traços de uma fixação nessa fase do desenvolvimento. O ódio irracional que leva a assassinatos e à profanação dos corpos pode ser entendido como um acting out – uma ação impulsiva que expressa emoções e conflitos inconscientes – da pulsão de morte, onde a violência não é apenas uma resposta a conflitos esportivos, mas um sintoma da necessidade inconsciente de destruir para reafirmar a própria existência.

O fenômeno da autodestruição dentro dessas torcidas não se limita ao confronto físico. Há um prazer inconsciente no risco, na transgressão e na degradação do próprio corpo, seja pelo consumo excessivo de álcool e drogas, seja pela disposição em se colocar como bucha de canhão em embates violentos. O indivíduo, ao se tornar “bucha de canhão”, encontra no risco extremo uma forma paradoxal de existir, ainda que isso signifique diluir-se no grupo e abraçar a própria degradação como identidade. É como se a violência oferecesse uma experiência de limite, onde a pulsão de morte se realiza em sua forma mais pura. O grupo reforça essa dinâmica, pois, no laço narcísico da torcida, há um pacto inconsciente: o indivíduo anula-se em prol do coletivo, e o coletivo valida seu desejo de destruição. Freud descreve o narcisismo como uma etapa do desenvolvimento em que a criança direciona toda sua libido (energia psíquica) para si mesma. Nas torcidas, há uma regressão a esse estágio: o grupo funciona como um eu ideal (ostentoso, invencível), e o indivíduo se funde a ele para recuperar uma sensação de onipotência perdida. O grupo só existe porque os indivíduos o mantêm com seu engajamento, e os indivíduos só se sentem poderosos porque o grupo os valida. É uma relação de dependência recíproca, onde a violência serve tanto para afirmar o poder do grupo quanto para saciar a necessidade individual de reconhecimento. A impossibilidade de simbolizar o conflito e canalizar essa energia para outros meios torna a agressividade um fim em si mesma. O laço narcísico é, portanto, a cola que mantém essa estrutura, onde autodestruição e pertencimento se confundem, e a identidade individual se dissolve em uma ilusão de grandiosidade coletiva.

Se o futebol é um espetáculo catártico, terapêutico, por que algumas torcidas transformam essa experiência em guerra? A resposta pode estar na combinação entre a pulsão de morte e as fixações da fase anal. Para muitos, a destruição oferece intensidade, significado e pertencimento que a vida cotidiana não proporciona. Freud nos lembra que a cultura é uma frágil represa contra a barbárie. No caso das torcidas organizadas, vemos como essa barreira se rompe, permitindo que o desejo de destruição retorne com força, mascarado de paixão e devoção. A humilhação extrema, como expor nádegas em atos de violência, pode ter raízes em traumas não elaborados da infância, onde a vergonha e a exposição corporal foram experimentadas como formas de punição. Ao repetir esse gesto no outro, o agressor busca inconscientemente dominar seu próprio trauma, projetando no inimigo sua angústia de castração, sinalizando que a violência extrema nas torcidas não é mera brutalidade, mas um sintoma de conflitos psíquicos profundos. A humilhação do inimigo, ao mesmo tempo que reforça o narcisismo grupal, serve para mascarar uma angústia primordial: o medo de ser frágil, descontrolado ou “castrado” simbolicamente. Assim, por trás da “paixão” pelo futebol, esconde-se uma economia psíquica regressiva, onde a destrutividade humana ressurge sob o disfarce da devoção esportiva.

A violência entre torcidas organizadas, portanto, não é apenas um problema de segurança pública. Ela revela uma falha na capacidade simbólica do sujeito e da sociedade em lidar com a agressividade. Sem um espaço para elaborar esse excesso pulsional, a destruição torna-se um destino inevitável. A psicanálise nos ajuda a entender que esses atos não são apenas impulsivos, mas sintomas de processos inconscientes mais amplos, ligados ao pertencimento, ao poder e à expressão de uma destrutividade que, enraizada na fase anal e alimentada pela pulsão de morte, transforma o estádio em palco para a repetição de traumas primitivos.

Psicóloga Helena Chiappetta

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Helena Chiappetta
Maria HELENA Barbosa CHIAPPETTA é Psicanalista Clínica pela ABRAPSI. É Psicóloga Clínica (CRP - 02/22041), é também Neuropsicóloga. É Avaliadora Datista CORETEPE (CRTP-1041). Tem Especialização em: Psicanálise, Psicopatologia e Saúde Mental; Terapia Familiar; Arteterapia; Psicopedagogia Clínica e Institucional, e em Ciências da Religião; Licenciatura em Letras (cursando), em Filosofia e em Pedagogia, além do Bacharelado em Teologia. É Bacharelanda em Psicanálise. Atualmente é Docente no SEID Nordeste e SEID Uberlândia. É Professora Convidada no Curso de Formação em Psicanálise da SNTPC. Tem experiência como docente de Hebraico Bíblico, Psicanálise e Teoria Analítica, Educação Religiosa, Artes, Teologia com ênfase em Ciências da Religião Aplicada e Liderança Institucional. Dedica-se ao estudo das neuroses atuais. É colunista deste Portal Folha Gospel. E-mail: helena.chiappetta@icloud.com Instagram profissional: @h.chiappetta
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