Os turcos convertidos ao cristianismo temem pelas suas vidas após o assassinato brutal de três pessoas em uma editora de livros cristãos. A chanceler alemã, Angela Merkel, espera que a Turquia tome providências após os assassinatos no sentido de demonstrar que é tolerante em relação ao cristianismo.

Tilman Geske, 46, tinha um sonho quando se mudou para a Turquia. Como cristão praticante, ele desejava viver em paz entre os muçulmanos em um país que foi um berço do cristianismo antigo. O imigrante alemão dava aulas de idioma, montou uma empresa de consultoria e traduzia textos religiosos cristãos. “Ele era uma pessoa adorável”, diz um contador turco que trabalhava no escritório ao lado do de Geske. “Toda vez que eu lhe perguntava como estava, ele respondia em turco tradicional: ‘Cok seker – muito doce'”.

Mas o doce sonho de Geske acabou abruptamente na última quarta-feira, quando cinco turcos fanáticos armados com facas de cortar pão invadiram o seu escritório da editora cristã Zirve no sudeste da cidade de Malatya, amarraram Geske e dois outros funcionários, torturaram os três e finalmente os degolaram. Uma das vítimas foi esfaqueada 150 vezes em um ataque particularmente brutal. Um bilhete deixado no local dizia: “Isso deve servir de lição para os inimigos da nossa religião. Fizemos isto pelo nosso país”.

Mas não há dúvida de que o ataque prejudicou mais do que ajudou o país dos cinco fanáticos. O dano causado pelos assassinos dificilmente poderia ser mais devastador. O “massacre do missionário”, conforme os jornais turcos chamaram esse crime de uma brutalidade incomum, lançou a Turquia em uma nova encrenca. O crime também fez com que despontassem desconfortavelmente dúvidas quanto às chances do país conseguir ingressar na União Européia.

Para os críticos da Turquia, incluindo alguns do partido União Democrata-Cristã (CDU) da chanceler alemã Angela Merkel, o incidente meramente confirma os seus alertas de que o país simplesmente não pertence à Europa. O primeiro-ministro italiano Romano Prodi disse que o crime “certamente não ajuda” a tentativa da Turquia de integrar a União Européia.

Merkel, que atualmente ocupa a presidência rotativa da União Européia, disse no último domingo que espera que a Turquia tome providências após os assassinatos no sentido de demonstrar que é tolerante em relação ao cristianismo. “Esse episódio não tem influência nas negociações, que continuarão sendo feitas. Mas ele é motivo para preocupação”, disse ela ao jornal “Münchner Merkur” em uma entrevista para a edição de segunda-feira (23/04). “Deve-se fazer tudo o que for possível para inibir um clima que torna possível tais mortes assustadoras”, disse Merkel ao jornal. “Eu espero uma ação clara do governo de Ancara no sentido de demonstrar que não há lugar para a intolerância em relação ao cristianismo e outras religiões”.

Os otimistas, por outro lado, esperam que o assassinato tenha sido apenas uma provocação dos oponentes da democracia que procuram desviar a Turquia do seu rumo ocidental. “Assim como ninguém pode alegar, após o massacre ocorrido em Virgínia, que todos os norte-americanos são assassinos em série, da mesma forma seria errado responsabilizar o país inteiro por esse crime”, adverte o sociólogo Dogu Ergil.

Entretanto, não existe mais nenhuma dúvida de que a Turquia se meteu em sérias dificuldades pelo menos no que se refere ao desenvolvimento da sua sociedade civil. O assassinato dos cristãos protestantes turcos expõe um problema profundamente enraizado no país: a Turquia está empacada – ou talvez até regredindo – quando se trata de questões fundamentais como tolerância e pluralismo. “Os turcos que residem na Alemanha abriram mais de 3.000 mesquitas por lá.

Se no nosso país somos incapazes de tolerar umas poucas igrejas, ou um punhado de missionários, em que estágio está a nossa civilização?”, escreveu Ertugrul Özkök, editor-chefe do “Hürriyet”, o principal jornal secular turco, em um duro editorial que criticou os assassinatos. “Onde estão a nossa humanidade, a nossa liberdade de crença, a nossa bela religião?”, questionou ele.

Parte Dois: Uma aliança profana de esquerda e direita

O perigo não vem – como se poderia esperar – dos usuais fundamentalistas muçulmanos. Em vez disso, trata-se de uma aliança profana de nacionalistas, que vai da esquerda até à direita islâmica, e que está incitando o ódio contra os livres pensadores e os indivíduos que professam outras crenças.

Segundo Ergil, existe uma “mistura de nacionalismo fanático e fervor religioso militante” que preparou o terreno para o massacre de Malatya – e que também parece estar por trás dos assassinatos do jornalista turco-armênio Hrant Dink e do padre católico Andrea Santoro no ano passado.

Especialistas como Ergil vêem esses assassinatos como parte de uma nova e inquietante tendência, segundo a qual os grupos fanáticos nacionalistas-religiosos vêem a violência como uma “força purificadora” e se definem como supostos “salvadores da nação” – como os criminosos de Malatya, de 19 e 20 anos, que eram estudantes e que viviam no mesmo dormitório de uma instituição islâmica conservadora.

O discurso carregado de ódio vem tanto da esquerda quanto da direita. Rahsan Ecevit, a viúva do popular ex-primeiro-ministro Bülent Ecevit, e uma suposta esquerdista, faz críticas rotineiras aos estrangeiros que compram terras na Turquia. Ela alega que aqueles que encorajam os cidadãos a se converterem a outra religião desejam dividir a Turquia.

O cristianismo está ganhando terreno na Turquia, especialmente no sudeste, advertiu recentemente o presidente do ultradireitista e nacionalista Partido da Grande União (BBP), chegando até a acusar os missionários cristãos de serem “apoiados pela CIA”. Quanto mais ousadas são essas teorias conspiratórias, mais populares elas parecem se tornar.

Mas, deixando de lado todo o sentimento nacionalista, os turcos ficaram chocados com os assassinatos brutais, que o governo do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan se apressou em condenar. Erdogan quer fazer com que a Turquia ingresse no bloco europeu.

“Mas para conseguir tal coisa a Turquia precisa apelar ativamente aos seus cidadãos para que estes aceitem pessoas de outras religiões e origens étnicas”, afirma Joost Lagendijk, membro holandês do Parlamento Europeu pelo Partido da Esquerda Verde. Ele é casado com uma turca.

Em certos casos as instituições estatais chegam a ajudar a promover um clima hostil. Já em 2001, o Conselho de Segurança Nacional da Turquia, sob o governo do primeiro-ministro Ecevit, classificou as “atividades missionárias” como uma ameaça à segurança nacional. O departamento de religião do governo distribuiu no passado sermões criticando os missionários. Além disso, o governo Erdogan, que é dominado pelo direitista Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), mina a sua credibilidade quando, por exemplo, uma autoridade como o ministro de Estado Mehmet Aydin alega que as atividades missionárias “não são uma declaração inocente de crenças religiosas, mas sim um movimento premeditado com fins políticos”.

Com os políticos fomentando a fúria popular, alguns segmentos da população parecem bastante dispostos a seguir a rota da intolerância. As formas mais agressivas de cristianismo, tais como aquelas pregadas pelas igrejas evangélicas, são especialmente suspeitas aos olhos de muitos turcos.

Até mesmo o muçulmano amigável que trabalhava no escritório ao lado do de Tilman Geske ficou cético ao ouvir que o alemão estava “fazendo proselitismo”. Para por um fim às suas dúvidas, ele deu uma olhada no escritório de Geske para ver se havia Bíblias por toda parte, mas não encontrou nada. “Esse assassinato terrível nos envergonha”, diz o horrorizado contador, que preferiu que o seu nome não fosse divulgado. Mas, mesmo assim, ele diz que não está satisfeito com algumas das coisas que escuta, como, por exemplo, o boato de que os missionários “colocam dinheiro nas Bíblias que doam em frente às nossas escolas”.

Para os cristãos perseguidos, às vezes é melhor passar despercebido. Não havia nenhuma inscrição na porta do escritório da Editora Zirve, em Malatya – um entregador foi atacado lá dois anos atrás e os nacionalistas mais tarde fizeram furiosas manifestações em frente ao prédio.

Parte Três: “Estamos presenciando uma caça às bruxas”

“Estamos presenciando uma caça às bruxas no estilo da Idade Média, e as vítimas de Malatya certamente não serão as últimas”, queixa-se Ihsan Özbek, presidente da Igreja da Salvação, uma união de grupos protestantes que alegam contar com 5.000 membros na Turquia. “Somos retratados como traidores e potenciais criminosos”, diz ele. A tensão é tão grande que Özbek adverte que ficou muito perigoso ser chamado de missionário. “Nos dias de hoje isso seria o equivalente a uma sentença de morte”, afirma ele.

Os cristãos relatam que há tentativas de mover ações judiciais contra supostos missionários, ainda que o proselitismo não seja oficialmente ilegal na Turquia. Na verdade, o oposto é que é verdade. Na Turquia é ilegal – pelo menos teoricamente – impedir que alguém pratique ou dissemine a sua fé. Mas abordagens criativas são às vezes adotadas para perseguir os impopulares infiéis, afirma o advogado Orhan Cengiz. Em Silivri, uma cidade a oeste de Istambul, dois convertidos estão atualmente sendo julgados pelo delito tipicamente turco de “insultar o caráter turco” e por “incitamento do ódio religioso”, ambos considerados crimes segundo o notório Artigo 301 do código penal do país.

Necati Aydin, pastor local e um dos funcionários da editora que foram assassinados no massacre de Malatya, já havia sido preso por ter distribuído Bíblias e panfletos religiosos. “Moradores da cidade alegaram que Aydin e os seus colegas insultaram o islamismo”, diz o seu advogado. Eles foram acusados de distribuir “propaganda contra a liberdade religiosa”.

Uma das posições mais difíceis é a dos convertidos turcos que voltam as costas à “verdadeira fé”. O sociólogo Behnan Konutgan, 54, converteu-se ao cristianismo quando ainda era estudante. “Enquanto os meus colegas de classe liam constantemente o Alcorão, eu levava uma bíblia”, recorda Konutgan. “Li o Novo Testamento com empolgação”. Atualmente Konutgan trabalha como pastor e tradutor da Bíblia. “O nosso problema é a sociedade, e não as leis”, afirma ele, descrevendo as suas próprias experiências. “As igrejas cristãs são tidas como inimigas”.

Os cristãos assassinados eram membros da pequena comunidade protestante de Malatya, que incluía alguns poucos estrangeiros como Tilman Geske e 15 turcos que se converteram do islamismo ao cristianismo. O jornal liberal “Radikal” calcula que haja cerca de 10 mil convertidos na Turquia, expressando surpresa pelo fato de o cristianismo ser tido como uma “ameaça” em um país de 73 milhões de pessoas, das quais 99% são muçulmanas.

Mas parece ser exatamente isto o que ocorre. Segundo uma pesquisa de opinião, 59% dos turcos são favoráveis a que se movam ações legais contra os missionários, e mais de 40% afirmaram que não gostariam de ter como vizinhos cristãos armênios ou gregos.
Tilman Geske foi enterrado na última sexta-feira em Malatya, a cidade turca que adotou como lar. Em uma entrevista à televisão turca, a sua mulher Susanne disse que ele foi um “mártir de Jesus” e que orará para que os assassinos do seu marido sejam perdoados.

Ugur Yüksel, um dos funcionários turcos cristãos assassinados com Geske, já havia sido sepultado. Ao contrário de Geske, porém, ele teve um sepultamento muçulmano, admitiu um porta-voz da comunidade protestante local: “A sua família insistiu quanto a isso”.

Fonte: Der Spiegel

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