A igreja católica determinou recentemente que “acumular riquezas excessivas” é pecado. Mas a hierarquia eclesiástica continua utilizando as mesmas estratégias financeiras próprias dos milionários, como as polêmicas sociedades de investimento de capital variável (Sicav), que têm uma tributação mais do que atrativa.

Essas sociedades, gerenciadas por profissionais do setor financeiro, aplicam parte do capital da Igreja na bolsa de valores, sem se guiar por outros critérios que não os meramente financeiros. O que não exclui, por exemplo, comprar ações de companhias farmacêuticas mesmo que elas fabriquem anticoncepcionais.

Já faz tempo que o dinheiro da Igreja vem sendo motivo de polêmica. Primeiro, por causa do próprio modelo que garante o financiamento da instituição, que combina contribuições privadas de seus fiéis com fundos públicos pagos pelos contribuintes. Depois, porque viu parte de suas economias serem reduzidas consideravelmente, vinculadas a algumas das maiores fraudes recentes do país (AVA, Gescartera, Afinsa, entre outras). Agora, questiona-se se os investimentos da Igreja não correm o risco de cair em contradição com a nova moral que o Vaticano apregoa e se as sociedades que a Igreja utiliza para obter lucro com suas doações não poderiam ser incluídas nessa nova categoria de pecadores: os ricos.

Para entender o que levou os clérigos a investirem nas milagrosas operações financeiras que hoje sustentam suas economias ou a confiarem seu dinheiro a entidades de reputação duvidosa, é necessário observar primeiro quais são suas fontes de renda. Uma delas tem sua origem no acordo feito pelo Estado espanhol e a Santa Sé sobre Assuntos Econômicos em 3 de janeiro de 1979.

Esse acordo, que reconhecia a contribuição pública mas também previa sua substituição progressiva na medida em que a Igreja passasse a se auto-sustentar – coisa que não aconteceu -, foi modificado em duas ocasiões. A primeira, em 1987, no governo de Felipe González, e a última, há dois anos, sob a administração de José Luis Rodríguez Zapatero. As últimas mudanças entrarão em vigor no próximo mês de maio quando começar a campanha do imposto de renda e os cidadãos fizerem a declaração do exercício de 2007.

Este ano a Igreja católica receberá, pela primeira vez, 0,7% das declarações do Imposto de Renda Sobre Pessoa Física (IRPF) dos contribuintes que optem pela doação, em vez dos 0,5239% que recebeu nos últimos 20 anos. Em troca desse aumento, que tem duração indeterminada, o clero deixará de receber dinheiro do Orçamento Geral da União para seu sustento básico e renuncia à isenção do IVA na aquisição de bens imóveis.

O orçamento das 68 dioceses espanholas, segundo dados oficiais, gira em torno de 1,3 bilhão de euros, sem contar as ordens religiosas e seus colégios, residências e centros eclesiásticos. No período de 1997-2006 a Igreja recebeu do Estado 2,2 bilhões de euros em virtude dos acordos já descritos. Em 2006, por exemplo, a soma do IRPG com o dinheiro vindo do orçamento garantiu a entrada de um total de 144 milhões, quantidade que, no entanto, cobre pouco mais do que 10% dos gastos eclesiásticos. O restante é financiado pelos rendimentos sobre o patrimônio, as atividades financeiras e, principalmente, pelas doações dos fiéis.

A alta dependência da famosa caixinha de doações é problemática na medida em que a sociedade espanhola começa a emitir sinais de uma crescente secularização. Em 1998, 83,5% dos espanhóis se declaravam católicos, enquanto que em 2007 o número havia baixado para 77%, segundo os dados do Centro de Investigações Sociológicas (CIS). Hoje, somente 15,8% dos que se dizem católicos assistem à missa todos os domingos. Além disso, o número de contribuintes que opta por doar dinheiro na declaração de renda caiu 10 pontos percentuais em menos de uma década.

Com a pouca fidelidade por parte dos fiéis, não é de se estranhar que nos últimos anos a Igreja espanhola tenha buscado vias alternativas de financiamento nos mercados de capitais. “Do ponto de vista legal, a Igreja é uma pessoa jurídica e como tal pode realizar todas as operações mercantis que são permitidas às pessoas jurídicas, incluindo o investimento na bolsa de valores”, afirma José Landete, professor de Direito Eclesiástico da Universidade de Valência.

A relação da Igreja católica espanhola com os mercados financeiros enfrentou várias dificuldades nos últimos anos. Talvez a mais grave tenha sido o episódio da Gescartera. Essa corretora de valores sumiu com mais de 100 milhões de euros de seus dois mil clientes, entre eles estavam cerca de trinta instituições religiosas. Mais recentemente, veio à tona o golpe dos selos. A promessa de altos rendimentos da Afinsa também atraiu o dinheiro do clero. A intervenção dessa sociedade filatélica fez com que o Arcebispado de Madri passasse a ser um de seus inúmeros credores. Além de confiar suas economias a outras entidades (com os resultados que já foram citados), a Igreja também criou suas próprias sociedades de investimento. Entre 1999 e 2000 foram registradas na CNMV três fundos de investimento de capital variável (Sicav) que têm o clero entre seus acionistas. Essas sociedades são o instrumento de investimento favorito dos milionários espanhóis. Entre as personalidades que possuem Sicav estão Amancio Ortega, Alicia Koplowitz, Juan Abelló, Rosalía Mera, Manuel Jove e as famílias Entrecanales e Del Pino, entre outros.

A principal propaganda das Sicav são seus atrativos fiscais uma vez que, por serem consideradas instrumentos de investimento coletivo, tributam apenas 1% sobre os benefícios em vez de pagar o imposto sobre as sociedades (que caiu para 30%). Esse sistema despertou as suspeitas da Fazenda. Um dos requisitos para constituir uma Sicav (e se aproveitar de seus benefícios) é ter pelo menos 100 acionistas. As suspeitas da Agência Tributária se devem ao fato de que, em muitos casos, esses 100 investidores não existem e são especialmente fornecidos ao cliente pela própria entidade gestora, para constituir a sociedade. São os denominados “mariachis”. No caso das três Sicav da Igreja, elas superam por muito pouco o limite de 100 acionistas.

Ao todo, as sociedades financeiras do clero têm um patrimônio de 17,79 milhões de euros. A maior delas, Umasges, é gerenciada pela Caja Madrid e seu principal acionista é a Mutua Umas, uma seguradora constituída em 1981 com o patrocínio da Conferência Episcopal. Também são acionistas da sociedade os arcebispados de Burgos e Madri. Apesar da sociedade possuir ações de companhias de grande capitalização (Telefónica, BBVA, Repsol, Ferrovial e Iberdrola), o grosso de seus investimentos está voltado para o que se conhece no jargão econômico como “chicharros”, ou seja, valores pequenos, muito voláteis e de maior caráter especulativo. Entre esses últimos se encontram as companhias Cie Cie Automotive, Campofrío, Viscofan y GAM. O perfil agressivo desses investimentos também é delatado pelo perfil de sua principal aplicação em renda variável estrangeira, o fundo CAAM Arbitrage Volatilité, um produto de retorno absoluto (muito similar aos temidos hedge funds, ou fundos de alto risco) que aproveita as oportunidades oferecidas pelo universo dos juros vinculados à inflação.

A Umasges reduziu em muito sua exposição à renda variável. Enquanto em 30 de junho passado cerca de 75,35% de sua carteira estava investida em ações espanholas, hoje esse valor é de apenas 52,12%. Entretanto, esse perfil mais conservador não impediu que os efeitos da crise financeira detonada pelas hipotecas norte-americanas diminuíssem seu capital. O patrimônio da Umasges caiu em um milhão de euros em menos de seis meses.

As outras duas Sicav vinculadas à Igreja espanhola são Vayomer e BI Gran Premiere. A primeira, com participação do Bispado de Astorga, é gerenciada pelo Banco Santander, enquanto a segunda tem a presença do Arcebispado de Oviedo e seu gestor é o banco português Espírito Santo. A BI Gran Premiere também tem um alto perfil especulativo e conta com investimentos tão pequenos como Fersa, Indo, Inypsa, Service Point ou Lingotes Especiales em sua carteira. Além disso, a BI Gran Premiere, na parte da carteira destinada à renda variável estrangeira, tem ações da Pfizer. Este investimento tem sido alvo de polêmica já que a farmacêutica norte-americana é fabricante do Viagra e de anticoncepcionais como Depo-Provera. Semelhante estratégia de investimentos vai contra a doutrina moral e sexual que o Vaticano defende.

Entramos em contato com a Conferência Episcopal com a intenção de conhecer sua opinião sobre os investimentos realizados pelas Sicav onde há participação religiosa. Entretanto, nenhum membro do órgão máximo da Igreja na Espanha quis dar qualquer declaração. Dizem estar “centrados” na próxima campanha de Imposto de Renda.

“Não é lógico que a Igreja exija umas condutas de comportamento e que não seja coerente com as mesmas na hora de investir seu dinheiro”, diz Alejandro Torres Gutiérrez, professor de Direito Eclesiástico da Universidade Pública de Navarra. Para o especialista, a Igreja não deveria se arriscar a perder seu capital nem deveria cair em contradições entre sua doutrina e seus investimentos. A solução para o financiamento da Igreja, segundo Torres Gutiérrez, está em dizer a seus fiéis que a contribuição que fazem é insignificante em relação aos serviços que recebem. “O clero vai receber esse ano em torno de 155 milhões pelo IRPF. Se 32 dos 44 milhões de habitantes da Espanha são católicos, isso significa que cada um doa apenas cinco euros por ano. O preço da missa fica a dez centavos por ano”, argumenta.

José Landete assinala que também não é conveniente cair na demagogia na hora de analisar os investimentos da Igreja. “Como ocorre com todas as sociedades de investimentos, elas são geridas por terceiros e seus profissionais estão mais preocupados em maximizar o lucro do cliente do que verificar se sua estratégia está adequada à moral dele”. Se por um lado o dia-a-dia da gestão de uma Sicav cabe aos profissionais, por outro os proprietários dessas sociedades normalmente fazem reuniões semestrais com os gestores dos bancos privados para unificar estratégias e decidir onde investir ou não.

Alguns bispos, ao se referirem às suas finanças, chegaram a chamar a Igreja de “uma mulher empobrecida cheia de jóias”. Será que a Bolsa é a solução para conservar essas jóias?

Fonte: El País

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