Temida por muito tempo, a concretização de uma dissidência no interior da Igreja anglicana tornou-se uma realidade. A crise vinha ameaçando desde 2 de novembro de 2003, quando a Igreja Episcopal (anglicana) dos Estados Unidos ordenou, como bispo, Gene Robinson (foto), um pai de família divorciado e abertamente homossexual.

Um cisma que opõe os tradicionalistas aos liberais foi confirmado no domingo (29) no final de uma semana de discussões organizada por uma vertente dissidente que leva o nome de Gafcon (Global Anglican Future Conference – Conferência sobre perspectivas Anglicanas Globais). Este evento reuniu em Amã (Jordânia) e em Jerusalém cerce de mil bispos, padres e laicos anglicanos de orientação tradicionalista.

Uma cisão de fato no âmbito do anglicanismo

Os seus promotores se recusam a falar de cisma e preferem empregar a expressão de “Igreja dentro da Igreja”. Contudo, a FOCA (Fellowship of Confessing Anglicans – Fraternidade dos Fiéis Anglicanos), a entidade que eles fundaram em Jerusalém, desponta como uma cisão de fato no âmbito do anglicanismo, o qual, por sua vez é também oriundo de uma ruptura ocorrida há quatro séculos entre a Roma dos papas e a Coroa da Inglaterra.

O número de seguidores que esta ala conservadora representa (35 milhões, ou seja, um pouco menos da metade dos 77 milhões de fiéis anglicanos), o questionamento da primazia do arcebispo de Canterbury, além da alternativa que ela pretende representar contra “o secularismo militante” e o “declínio espiritual” constituem um desafio sem precedente.

Por enquanto, a hierarquia oficial permanece em silêncio e aguarda a conferência de Lambeth (residência histórica em Londres dos arcebispos de Canterbury) que reunirá, de 20 de julho a 3 de agosto, os bispos do mundo inteiro – com a exceção da maior parte dos 300 dissidentes que já anunciaram que iriam boicotar este compromisso.

A declaração final da conferência rebelde que acaba de se encerrar em Jerusalém rejeita “a autoridade das Igrejas e dos dirigentes que renegaram a fé ortodoxa por meio de palavras ou de atos”. Ela reconhece a sede histórica da catedral de Canterbury, mas não aceita que “a identidade anglicana seja obrigatoriamente determinada pelo reconhecimento do arcebispo de Canterbury”. No plano doutrinário, ela está decidida a descartar os acréscimos recentes, de inspiração liberal, que foram promovidos no “Book of Common Prayer” (Livro de Oração Comum), o manual de base (elaborado em 1662) de todos os anglicanos. Por fim, ela pretende implantar a formação dos seus próprios padres em faculdades de teologia separadas, em Londres (Oak Hill) ou em Oxford (Wycliffe Hall).

A crise vinha ameaçando desde 2 de novembro de 2003, quando a Igreja Episcopal (anglicana) dos Estados Unidos ordenou Gene Robinson, um pai de família divorciado e abertamente homossexual, bispo do Estado do New Hampshire. Na ocasião, para preservar a unidade da sua Igreja, dom Rowan Williams, o arcebispo de Canterbury, havia evitado contestar esta decisão. Contudo, a sua hesitação acabou provocando a rebelião de comunidades inteiras nas “províncias” da África, da Austrália, da Ásia e da América Latina.

Estas romperam todos os vínculos existentes com a Igreja americana, enquanto os seus líderes se mobilizaram para tomar a frente da dissidência. Entre eles se destacam Peter Jensen, o arcebispo de Sidney (Austrália), Peter Akinola, o arcebispo da Nigéria, que andou se mostrando o mais violento nas suas diatribes anti-americanas, e Michael Nazir-Ali, o bispo de Rochester, de origem paquistanesa, que pertence à vertente “evangélica” da Igreja da Inglaterra, a qual se tornou majoritária em detrimento da vertente “anglo-católica”.

Uma redistribuição do poder

As declarações que foram ouvidas em Jerusalém refletem a separação que foi consumada em função da decisão que conduziu os anglicanos americanos a ordenarem um bispo homossexual: “Aquilo foi um surto de loucura”, comenta Peter Jensens, “que estremeceu o gigante adormecido do anglicanismo ortodoxo e evangélico”. “Ficou difícil”, acrescenta Michael Nazir-Ali, “ensinar a fé comum ao lado de clérigos que ordenaram uma pessoa cujo estilo de vida é contrário ao ensinamento unânime da Bíblia e da Igreja”.

Denunciando a “apostasia” (renegação de uma fé, uma palavra que ele pediu para retirar posteriormente) e o “revisionismo” da hierarquia atual, o nigeriano Peter Akinola tomou a palavra para denunciar “as manipulações daqueles que renegam o Evangelho”. Foi nas “províncias” da África que a reação mostrou-se mais violenta, contra o clérigo e os casais homossexuais (que foram abençoados por padres nos Estados Unidos e no Canadá), contra a secularização de tipo ocidental e em favor da defesa da família tradicional.

Esta tempestade anuncia uma redistribuição do poder no quadro da confissão anglicana, que desde o começo sempre foi dirigida pela Igreja mãe da Inglaterra. Atualmente, esta última vem sendo abandonada pelos seus fiéis. As suas finanças estão praticamente exauridas. Ela também enfrenta dificuldades para lidar com a secularização e o pluralismo religioso: no início de 2008, uma declaração do arcebispo Rowan Williams a favor da introdução da Charia (a lei islâmica) no quadro da lei britânica havia causado um escândalo.

O declínio da Igreja “estabelecida” da Inglaterra vem acrescentar-se aos avanços da vertente evangélica que tomam conta dos continentes do Sul e andou dividindo até mesmo as “províncias” anglicanas da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos e do Canadá. Conforme apontou um editorial do jornal “The Guardian” em 30 de junho, “a desaprovação de Rowan Williams marca o fim da dominação colonial sobre a Igreja anglicana”.

Fonte: Le Monde

Comentários