A revista Época desta semana (edição 452 – 13/01/2007) traz uma ampla matéria sobre o escândalo financeiro em que está envolvido o casal Estevam e Sônia Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo. O casal, que foi preso na terça-feira, 9 de janeiro, no Aeroporto de Miami, na Flórida, com US$ 56 mil não declarado, escondiam dinheiro até na capa de uma Bíblia.

Confira a matéria da revista Época:

A cena lembra um programa de auditório. Um homem com um microfone na mão domina um palco de cerca de 20 metros de largura. Fala a uma platéia apreensiva, formada na maioria por jovens. Faz brincadeiras e é acompanhado por uma banda de música. O conjunto toca um ritmo indecifrável, mas o público parece gostar – todo mundo tem a letra na ponta da língua. No meio do ato religioso, o apresentador, bispo Ricardo, pergunta aos fiéis: “As notícias que vêm do demônio vão nos separar do amor de Deus?”. As cerca de cem pessoas respondem em coro: “Nãããããão”. É o ponto alto do “espetáculo”.

O discurso do pastor ocorreu na noite da terça-feira 9, na igreja Renascer do Alto da Lapa, em São Paulo. Àquela mesma hora, a bispa Sônia e o apóstolo Estevam Hernandes, líderes e fundadores da Renascer, estavam presos no Federal Detention Center (Centro Federal de Detenção), uma penitenciária em Miami, nos Estados Unidos. Pela manhã, haviam sido presos por agentes do serviço de imigração ao desembarcar com US$ 56.467 não declarados à alfândega americana.

A prisão do casal Hernandes é decorrente dos inúmeros problemas acumulados pelos líderes da Renascer com a Justiça. No Brasil, o apóstolo, a bispa e outras pessoas ligadas a eles são investigados e processados pelo Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo. A ficha de acusações inclui crimes de estelionato, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica. A apuração do Ministério Público começou depois da publicação, em maio de 2002, de duas reportagens de capa de ÉPOCA: “Os caloteiros da fé” e “Onde está o dinheiro”. Elas relatavam denúncias de fiéis que acusavam os fundadores da Renascer de desviar vultosas quantias arrecadadas durante os cultos e eventos da igreja.

Segundo as denúncias, o dinheiro servia para financiar extravagâncias da bispa Sônia e do apóstolo Estevam, como a compra de uma fazenda em Mairinque, interior de São Paulo, por R$ 1,8 milhão, e de uma casa em Boca Raton, na Flórida, por cerca de R$ 1 milhão. As reportagens chamaram a atenção do promotor Marcelo Mendroni, que pediu a instauração de inquérito policial. “As reportagens de ÉPOCA eram tudo o que tinha quando iniciei as investigações”, diz Mendroni.

Com o prosseguimento das investigações policiais, o Ministério Público acredita ter desvendado um esquema de desvio e lavagem de dinheiro coletado nos templos e nos eventos religiosos comandados pelo casal Hernandes. Uma das descobertas dos investigadores foi a existência de várias empresas, contas bancárias e bens registrados em nome de pessoas ligadas aos líderes da Renascer. A bispa e o apóstolo têm um haras em Atibaia, cidade serrana a 67 quilômetros de São Paulo, com 259 cavalos da raça manga-larga, avaliado em R$ 5 milhões. Ele está registrado no nome de Fernanda, filha de Estevam e Sônia (leia o quadro na sequência da matéria).

Parte dessas contas bancárias e desses bens encontra-se hoje seqüestrada ou bloqueada pela Justiça brasileira. Em novembro, o promotor Arthur Lemos, do Gaeco, pedira a prisão do casal, que faltou a uma audiência judicial. Mas a ordem acabou sendo revogada a pedido da defesa dos réus. Mesmo com a anulação, os promotores paulistas vinham monitorando os passos dos Hernandes e trocando informações com autoridades americanas. No setor de imigração dos Estados Unidos, os nomes de Sônia e Estevam estavam marcados com o “alerta azul” – código usado para pessoas que podem entrar no país, mas respondem a processos acompanhados pela Justiça americana.

O “alerta azul” chamou a atenção de agentes do Department of Homeland Security (DHS), o departamento de segurança interna dos EUA. De acordo com documento do DHS, obtido por ÉPOCA, ao Apostolo Estevam Hernandes algemado ao lado do dinheiro que estava escondido na bagagemdesembarcar em Miami Estevam apresentou uma declaração à alfândega americana para ele, Sônia e o filho Gabriel, na qual mencionava não portar mais de US$ 10 mil – o limite permitido pela lei americana. Segundo o relatório assinado pelo agente especial Edwin Santiago, quando as malas do casal começaram a ser inspecionadas, Sônia e Estevam apressaram-se em retificar a declaração anterior. Preencheram novo documento, afirmando portar US$ 21 mil. Mas a revista continuou. No final, os agentes descobriram os US$ 56.467, distribuídos da seguinte forma: US$ 17.679 na bolsa de Sônia, cerca de US$ 9 mil escondidos sob a capa de uma Bíblia da bispa, US$ 10 mil dentro de uma jaqueta na mala de Estevam, US$ 10 mil na mochila do filho Gabriel e mais US$ 9.700 num estojo de CDs.

Os Hernandes terão uma audiência num tribunal americano no dia 24 de janeiro. Responderão por falsificação de documentos e evasão de divisas. Até lá, não poderão deixar os Estados Unidos. No Brasil, eles tiveram nova ordem de prisão preventiva decretada. O pedido de extradição do casal já foi feito pelo Ministério Público.

A prisão deflagrou o início de uma “guerra espiritual” pela Renascer. Nos templos e nos programas da Rede Gospel, uma emissora de TV UHF pertencente à igreja, os pastores passaram a conclamar os fiéis a reagir ao que eles classificam como uma perseguição do “demônio” – encarnado pela imprensa e pelos promotores. No dia seguinte, os devotos já estavam com o discurso na ponta da língua. “O anticristo está divulgando mentiras sobre nós”, disse uma mulher ao sair de uma das igrejas. “O demônio está inventando essas coisas para abalar o povo de Deus”, afirmou outro rapaz. Ao lado da sede da Renascer, em São Paulo, cartazes de apoio aos líderes da igreja podiam ser vistos em vitrines de lojas e paredes de lanchonetes. “Bispa Sônia e Apóstolo Estevam, nós te amamos”, dizia um deles.

De acordo com especialistas em religião, o comportamento dos fiéis é coerente com a pregação feita dentro dos templos das igrejas neopentecostais, que não pertencem à linha das denominações evangélicas tradicionais – e são as que mais crescem no Brasil. “Nessas igrejas, como a Renascer, o sobrenatural exerce um poder imenso no cotidiano. Deus e o demônio são responsáveis por tudo o que acontece no cotidiano dos fiéis”, diz Ricardo Mariano, sociólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul. Mariano diz duvidar que a prisão de Sônia e Estevam abale a crença dos seguidores da Renascer. “Tradicionalmente, esses grupos neopentecostais colocam-se como perseguidos. Usam muito bem os exemplos bíblicos de pessoas que foram injustiçadas”, diz o antropólogo Flávio Conrado, pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (Iser), do Rio de Janeiro. Em 1992, o bispo Edir Macedo, líder máximo da Igreja Universal do Reino de Deus, foi preso, acusado de charlatanismo e estelionato. O que parecia um duro golpe na imagem do religioso tornou-se peça de propaganda de Macedo. Segundo Mariano, nas publicações da própria Igreja Universal o bispo costuma aparecer atrás das grades com uma Bíblia na mão, posando de mártir.

O cuidado com a imagem, segundo os especialistas em religião, é uma das razões por trás do vertiginoso crescimento da Renascer desde sua fundação, em 1986. A igreja começou com reuniões que não excediam 15 pessoas, na sala de jantar dos Hernandes, num apartamento pequeno na zona oeste de São Paulo. Em 2002, quando surgiram as primeiras denúncias contra a igreja, ela já somava 400 templos. Hoje, são cerca de 1.200 no Brasil e em cinco outros países. Esse crescimento em grande parte também se deve à maneira profissional com que a igreja se relaciona com seus devotos.

As acusações

Segundo o Ministério Público, Estevam e Sônia Hernandes, fundadores da Renascer, respondem a processos por estelionato, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica

Só em São Paulo e Brasília, o casal responde a cerca de 110 processos por cobrança de aluguéis de imóveis, telefones e títulos diversos. O valor da dívida ultrapassa R$ 12 milhões

Os Hernandes também respondem a processo por falsidade ideológica por terem aberto uma igreja de fachada, a Igreja Internacional Renovação Evangélica, presidida pelo bispo da Renascer Jorge Luiz Bruno, um dos braços direitos de Estevam

Contas bancárias de pelo menos oito empresas ligadas à Renascer estão sendo investigadas. A suspeita do Ministério Público Estadual é que elas sejam usadas para lavar dinheiro

As empresas ligadas ao casal teriam pelo menos R$ 7 milhões de dívidas com a Secretaria da Fazenda

Na Flórida, os dois respondem a processo por evasão de divisas e falsificação de documento. Na terça-feira, o casal foi preso no aeroporto internacional de Miami porque tentou entrar nos Estados Unidos com US$ 56.467 em dinheiro vivo, mas havia declarado à alfândega não portar mais de US$ 10 mil, limite permitido pela lei americana.

A RGC Produções acumula R$ 5 milhões em títulos protestados. A empresa foi fundada por Estevam Hernandes, Antonio Carlos Ayres Abbud, Ricardo Abbud e Leonardo Abbud. Mas no papel, oficialmente, pertence a um pastor da Renascer

A Publicações Gamaliel Ltda., editora que pertenceu a Estevam e Sônia Hernandes, entre os anos de 2000 e 2003, teria movimentado mais de R$ 46 milhões não declarados à Receita Federal

A empresa FH, que pertenceu a Felippe Daniel Hernandes, deve à Secretaria da Fazenda cerca de R$ 9 milhões

Segundo informações do BC, entre 24/4/1998 e 24/4/2003, Estevam gastou em cartões de crédito internacional US$ 480.662,62

O império da Renascer

Segundo o Ministério Público, a maioria dos bens da igreja está nos nomes dos filhos dos Hernandes, de testas-de-ferro ou de “laranjas” do casal

• 1.200 templos no Brasil e no exterior
• 4 apartamentos em São Paulo, no valor de R$ 6 milhões
• Salão no Edifício Copan, no centro de São Paulo
• Arrecadação de R$ 2,2 milhões por mês com doações
• Rede Gospel, emissora de TV
• Gravadora Gospel Records
• Rádio Gospel
• Waves, produtora de CDs e shows
• Publicações Gamaliel, editora
• Gospel Wear Indústria e Comércio Confecções de Roupas Ltda.
• RGC Produções
• Haras Reobot, em Atibaia, interior de São Paulo, avaliado em R$ 5 milhões. O imóvel está no nome de Fernanda, filha do casal Hernandes
• 259 cavalos da raça manga-larga marchador, no valor de R$ 4,2 milhões
• Fazenda de 273 mil m2 em São Roque (SP) no valor de R$ 1,3 milhão
• Fazenda de 181.500 m2 em Mairinque (SP) no valor de R$ 1,8 milhão. Na propriedade, há uma casa de 700 m2 com cinco quartos, duas suítes, alojamento para mil pessoas e uma piscina semi-olímpica
• Uma mansão em Boca Raton, no litoral da Flórida, avaliada em US$ 465 mil. O imóvel tem 340 m2, seis quartos e três vagas na garagem
• Fundação Evangélica Trindade
• FH Comunicação e Participação. Pertencia a Felippe, filho do casal, e foi transferida para dois bispos do Recife

Fonte: Leia a matéria completa na Revista Época – Edição 452 – 13/01/2007

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