Falls Church [no Estado de Virgínia] é um desses subúrbios arborizados e residenciais na área metropolitana de Washington onde o pedestre passa por suspeito. São 8h30 e Carol Jackson está tirando sanduíches, bolos e bebidas da mala do carro estacionado em frente a um prédio comercial térreo, alugado pela congregação, nos fundos da igreja episcopal que deu nome ao município e cuja paróquia o próprio George Washington freqüentava antes mesmo de os EUA existirem.

Carol Jackson está entre a maioria esmagadora (90%) de membros da congregação da Falls Church que votou, em dezembro de 2006, por se desligar da Igreja Episcopal, num ato de desagravo contra a ordenação de bispos (abertamente) homossexuais.

“Esta rua era uma estrada de tabaco. Os colonos vendiam tabaco para o rei, para sobreviver. O tabaco vinha puxado por cavalos, sobre toras de madeira que rolavam até o rio. Por isso, esta rua era chamada de ‘estrada de rodagem’. A igreja foi construída em 1767. Mas antes já havia outra, de madeira. Há igrejas que se chamam São Pedro, São João… A nossa é diferente. Chamavam-na ‘a igreja na estrada para a cachoeira’ (‘the falls’) e eu acho bonito”, diz Jackson, diretora-executiva de uma associação imobiliária sem fins lucrativos, voltada para pessoas de baixa renda da região de Falls Church, enquanto dispõe os pacotes que trouxe do carro sobre a mesa da sala escura.

Por seu significado histórico e por ser freqüentada ainda hoje pela elite política de Washington, a igreja episcopal de Falls Church é um símbolo no epicentro de uma dramática disputa legal e política, que poderá resultar no esfacelamento da Igreja Anglicana mundial, dividida por uma guerra intestina entre conservadores e liberais –e por uma nova configuração geopolítica em que, ironicamente, a ascendência inédita das antigas colônias africanas convertidas ao cristianismo ameaça algumas das principais conquistas democráticas da igreja nos países desenvolvidos.

“Somos todos pecadores. Precisamos da cruz, de um líder que esteja acima dos pecados. Escolhemos ficar com o Rei”, diz Carol Jackson, fazendo referência a Deus e à opção pela ortodoxia.

Nos últimos cem anos, a balança populacional de anglicanos no mundo sofreu uma reviravolta geográfica. Em 1900, 80% viviam na Grã-Bretanha e apenas 1% na África sub-saariana. Hoje, 55% vivem na África e apenas 33% na Grã-Bretanha (26 milhões). Para completar, a Igreja Episcopal (braço americano da Igreja Anglicana) passou a contar com apenas 2 milhões de pessoas (1 milhão a menos do que em 1970).

Os bispos anglicanos do mundo inteiro se reúnem a cada dez anos em Canterbury, na Inglaterra, para a tradicional Conferência de Lambeth. Neste ano, centenas de bispos alinhados aos conservadores (entre eles, representantes sul-americanos) decidiram boicotar o evento, que terminou no último dia 3, convocando uma conferência alternativa, em Jerusalém, em junho.

O principal pivô desse processo, que corre o risco de se encaminhar para o cisma da Igreja Anglicana, a terceira maior denominação cristã do mundo, com 77 milhões de membros, foi a ordenação, em 2003, do bispo Gene Robinson, da Igreja Episcopal de New Hampshire, um homem divorciado que vivia oficialmente com outro homem.

Reação conservadora

A Igreja Episcopal sempre foi uma das mais liberais entre as denominações do protestantismo tradicional nos EUA. Ligada à comunidade anglicana internacional, que tem no arcebispo de Canterbury sua autoridade máxima, ela está por sua vez submetida à autoridade de uma presidência nacional –cargo que é ocupado desde novembro, e pela primeira vez na história da Igreja Anglicana, por uma mulher, a bispa Katherine Schori.

Dentro desse sistema federativo, as decisões de cada congregação são tomadas de acordo com o voto dos seus membros. Com isso, a Igreja Episcopal acabou se tornando uma das mais democráticas dos EUA, na qual conviviam e se debatiam pontos de vista divergentes, sem que houvesse necessidade de desmembramento, como no caso do aborto. Nos anos 70, a igreja passou a ordenar mulheres e, nos anos 90, gays.

Em desacordo com a progressiva liberalização, a liderança de algumas congregações (cerca de 200, segundo avaliação dos próprios conservadores; não mais do que 35, num total de 7.000 igrejas, segundo o Serviço de Notícias Episcopal) buscou o apoio de bispos conservadores africanos.

A Nigéria, por exemplo, um país violentamente cindido entre cristãos e muçulmanos (e, por isso mesmo, visto por muitos conservadores no Ocidente como um bastião na cruzada cristã contra o fundamentalismo islâmico), conta hoje com uma população de 17 milhões de anglicanos, a maior comunidade anglicana do mundo, sob a liderança do arcebispo Peter Akinola, eminente porta-voz contra os direitos homossexuais na África.

Desrespeitando as regras da Igreja que circunscrevem a autoridade eclesiástica a regiões geográficas, Akinola concedeu ao reverendo Martyn Minns, um pastor do Estado da Virgínia, o título de bispo pela igreja da Nigéria, com o objetivo de estabelecer uma autoridade local a serviço da dissidência conservadora nos EUA. Minns e Gene Robinson foram os únicos bispos não convidados por Rowan Williams, arcebispo de Canterbury, para a conferência de Lambeth deste ano.

O caso da igreja de Falls Church é emblemático, porque também envolve a disputa legal pela propriedade, um sítio histórico avaliado em alguns milhões de dólares.

Medo

Quando 90% da congregação decidiu se afastar da Igreja Episcopal e se filiar à conservadora Cana (Sínodo dos Anglicanos na América do Norte), presidida à distância por Akinola, recorreram a uma lei específica do Estado da Virgínia (criada no século 19 para resolver o dilema de paróquias que divergiam quanto ao fim da escravidão) que garante o direito de propriedade à maioria da congregação em desacordo.

A constitucionalidade da lei foi confirmada em juízo no final de junho. A Igreja Episcopal vai apelar e, dependendo do resultado, é possível que tente chegar até a Suprema Corte.

Enquanto isso, os 10% que votaram pela permanência dentro da Igreja Episcopal se reúnem do outro lado da rua, numa pequena sala emprestada pela Igreja Presbiteriana, onde os cultos dominicais são celebrados pelo reverendo Michael Pipkin, ex-capelão de um hospital da Marinha, convocado em regime de urgência pela diocese: “As coisas estão muito tensas com os amigos do outro lado da rua. A rigor, eles estão ocupando a nossa propriedade. Não sei por que, eles estão com muito medo. E nós também”, diz o reverendo.

À primeira vista, pode parecer estranho que os gays queiram participar de uma doutrina que os condena (muitas igrejas protestantes tradicionais, como a Falls Church, se assemelham cada vez mais às evangélicas).

Mas é preciso notar que, nos EUA, as igrejas estão integradas de tal forma à vida comunitária (tanto quanto a escola, o clube, o trabalho e a universidade) que pertencer a uma paróquia passa a ser quase uma questão de direitos civis –e que, no fundo, os membros da Igreja Episcopal estão lutando pela sobrevivência do espírito democrático no qual se fundava a sua denominação.

“A questão é como interpretamos a Bíblia. Para nós, não é preto no branco. Tentamos levar em conta a realidade. Há coisas que não podem ser tomadas ao pé da letra nas Escrituras. A Bíblia é muito clara sobre o divórcio e entretanto aprendemos a lidar com isso. Tentamos lidar com a realidade presente e adaptá-la à Bíblia. Para os ortodoxos, a Bíblia tem uma autoridade autônoma sobre a sexualidade. Eles interpretam Deus pela Bíblia e devia ser o contrário: a Bíblia é que deveria ser interpretada segundo Deus”, diz Pipkin.

Cruzada

O democrata Michael Gardner, casado com a prefeita de Falls Church, Robin Gardner, mantém um blog com informações atualizadas sobre o processo judicial. “Gente da administração Bush foi recrutada para transformar a igreja de Falls Church. O ideólogo evangélico Michael Gerson, assessor de Bush e colunista do ‘Washington Post’, era membro da igreja. A perspectiva evangélica tem como propósito criar uma resposta cristã ao extremismo islâmico. A Igreja Episcopal não tem nada a ver com isso. É uma base muito mais comunitária, de congregação. É o contrário das religiões missionárias evangélicas”, afirma.

A cruzada missionária à qual alude Gardner encontra numa megaigreja a poucos quilômetros dali, em outro subúrbio de Washington, uma das suas representações mais elaboradas. A McLean Bible, com mais de 10 mil membros comandados pelo pastor Lon Solomon, um judeu convertido ao cristianismo, próximo de George W. Bush e membro da organização Judeus para Jesus, mantém laços tanto com republicanos ilustres, como o promotor Kenneth Starr, quanto com Joel Rosenberg, que, além de autor de best-sellers apocalípticos sobre o Oriente Médio e a guerra santa, foi assessor de Benjamin Netanyahu e idealizador do Joshua Fund, uma organização evangélica de apoio a Israel.

Os livros de Rosenberg são vendidos na livraria da igreja, ao lado de edições da Bíblia com capa de camuflagem, que os fiéis podem comprar e enviar aos soldados no Iraque com uma dedicatória.

Um mundo que, em princípio, não tem nada a ver com os 10%, em Falls Church, que optaram por permanecer na Igreja Episcopal e hoje assistem ao serviço de domingo numa sala emprestada do outro lado da rua, à espera de uma solução improvável. O voto os pegou de surpresa. Um ano e meio depois, ainda parecem estar em estado de choque diante do que avaliam ter sido um golpe de Estado.

“Não houve nenhuma discussão. As pessoas se sentiam intimidadas. Quando nos demos conta, já era tarde. Quase choramos. As famílias que tomaram a igreja não são episcopais; são batistas, evangélicas. A Igreja Episcopal representa tudo o que os EUA são”, reage inconformada Robin Fetsch, que fazia parte da congregação de Falls Church desde 1980. E eu me controlo, por simpatia e compaixão, para não responder: “Nem tudo”.

Fonte: Folha Online

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