Slotervaart, um bairro com a reputação de “problemático”, situado a oeste de Amsterdã, na Holanda, tem sido objeto de uma vigilância reforçada depois da difusão na Internet do filme “Fitna”, realizado pelo deputado populista de direita Geert Wilders.

Há várias semanas, a polícia, com os assistentes sociais, vinha planejando estratégias de intervenção destinadas a acalmar a cólera que poderia ter sido provocada por este curta-metragem, cujo objetivo declarado é denunciar a intolerância do Alcorão.

“Nenhuma ocorrência foi registrada, mas uma centelha ainda poderia provocar o incêndio”, declarou um porta-voz da polícia do distrito de Amsterdã/Amstelveen no dia que se seguiu à sua exibição. “Tudo dependerá possivelmente da cobertura do evento pelos canais de televisão estrangeiros”. Visíveis em quase todas as varandas dos alojamentos exíguos do Slotervaart, instaladas ao lado da roupa que seca com dificuldade e dos tapetes para oração muçulmanos, antenas parabólicas permitem captar as estações de rádio árabes e turcas. “Mas, atenção: aqui nós não estamos no Bronx nem nos subúrbios de Paris”, comenta com bom humor Simon, um antilhano que entregava pizzas até abrir uma loja que fica aberta durante a noite.

Há alguns meses, carros haviam sido incendiados no Slotervaart. Depois da morte suspeita de um jovem marroquino, enfrentamentos com a polícia haviam agitado bairro durante várias noites. Contudo, se este bairro passou a ser o centro das atenções a partir de 2004, foi pelo fato de ser o local onde morava Mohamed Bouyeri, o assassino do cineasta Theo Van Gogh. Por influência de uma mesquita radical, este jovem rapaz nascido na Holanda foi doutrinado pelo fundamentalismo religioso e assassinou numa rua muito movimentada o sobrinho-bisneto do célebre pintor, autor de um filme crítico em relação ao Islã. Neste momento, com a estréia deste curta-metragem de Geert Wilders, a Holanda tem a impressão de estar revivendo, de uma forma diferente, os fatos que precederam aquele crime que tanto os revoltou.

Do outro lado de Amsterdã, no seu vasto escritório decorado de branco, o sociólogo Paul Scheffer não esconde sua preocupação em relação à “grande confusão” que reina em seu país. Na sua opinião, a mídia trata mal a questão do Islã, que em geral costuma ser considerada por um ângulo puramente conflituoso. “Para solucionar os problemas, talvez seja necessário antes vivermos situações de conflito”, diz Scheffer com esperança.

Mas ele deplora que a Holanda esteja misturando as questões de religião, imigração, delinqüência e terrorismo, e esteja vacilando entre o radicalismo de Wilders e a atitude ambígua do governo democrata-cristão de Jan Peter Balkenende. Este último havia estudado a possibilidade de mandar proibir a exibição de “Fitna” para evitar uma repetição do caso das caricaturas dinamarquesas de Maomé. “Wilders nem sequer existiria sem as ameaças dos radicais, e os radicais precisam de Wilders”, deplora Paul Scheffer. Sobre Balkenende, diz o sociólogo: “ele disse que a liberdade religiosa é indispensável, mas esqueceu-se de acrescentar que ela é inseparável da liberdade de expressão”.

Já em 2000, o sociólogo, um simpatizante da esquerda trabalhista, questionava o funcionamento da sociedade holandesa por favorecer uma espécie de “desenvolvimento em separado”. Esperava-se dos cerca de 850.000 muçulmanos (que correspondem a 6% da população) que eles encontrassem “naturalmente” o seu lugar dentro do sistema dos “pilares” político-religiosos. Enquadrados pelos imames (sacerdotes), ajudados por subvenções que lhes garantiam escolas, locais para praticarem o seu culto e direitos sociais, os muçulmanos deveriam supostamente encontrar o seu caminho sem interferirem no bom andamento da vida pública. Enquanto o liberal Frits Bolkestein havia preconizado que o poder público levasse em conta “o grau de ódio” dos holandeses para com os turcos e os marroquinos, Paul Scheffer havia fustigado um sistema de “vasta tolerância e de integração reduzida, próprio para aumentar as desigualdades e a alienação e que estava ameaçando a paz social”.

Inicialmente tachado de “racista”, o sociólogo foi se tornando uma referência para um grande número de dirigentes de todas as tendências políticas, que acabaram se convencendo de que a sua sociedade estivera equivocada ao se considerar invulnerável. A idéia – que foi evidenciada por vários inquéritos – segundo a qual uma parte da comunidade muçulmana vem se radicalizando, seguiu o seu caminho: o país, onde a vertente sunita permanece majoritária, contaria alguns milhares de elementos radicais, além de 20.000 a 30.000 pessoas “favoráveis às vertentes extremistas”, segundo explica o professor Afshin Ellian. Este jurista nascido em Teerã, professor na Universidade de Leyde, conta com a proteção de um esquema de segurança em tempo integral: ele denunciou os radicais muçulmanos que recusam as leis holandesas.

Segundo um recente relatório do Conselho da Europa – contestado pelas autoridades de Haia, a capital política do país -, a Holanda se tornou o país mais avesso ao Islã em toda a Europa. O movimento de reação por parte da sociedade foi desencadeado pelo gesto de Mohamed Bouyeri e pela cólera de Ayaan Hirsi Ali. O assassino de Theo Van Gogh havia enfiado no coração da sua vítima um punhal junto com uma mensagem dirigida à co-roteirista do filme, Ayaan Hirsi Ali, uma refugiada de origem somali que se tornara deputada. A jovem mulher havia se transformado no alvo de críticas por ter “polarizado” o debate holandês ao julgar que o Islã, segundo ela uma religião monolítica, era incompatível com uma sociedade laica. Ela foi então obrigada a deixar a Holanda, depois de ver a ministra da imigração, Rita Verdonk, tentar retirar-lhe a sua nacionalidade holandesa. Ameaçada de morte, ela vive atualmente em Washington.

“De fato, os dois principais partidos, o democrata-cristão e o trabalhista, ficaram satisfeitos por vê-la ir embora, em 2006”, afirma Afshin Ellian. Para o escritor Ian Buruma, nascido na Holanda e autor de “Alguém matou Theo Van Gogh” (cuja edição francesa é publicada por Flammarion, 2006), “ao longo dos últimos séculos, ninguém sacudiu tantas coisas na Holanda quanto Ayaan Hirsi Ali”.

Em todo caso, o debate que foi instaurado por este episódio está longe de estar encerrado. Ele provocou não só uma focalização das atenções em torno do Islã, como também em relação aos casamentos forçados, aos crimes de honra e às agressões contra os homossexuais, todas essas sendo realidades que até então eram mantidas sob silêncio. Alguns dias atrás, as polícias de Amsterdã e de Nilmegen puseram para funcionar um plano contra aquilo que elas chamam de “crimes de ódio”: os ataques (numerosos) contra gays, por parte de jovens magrebinos (originários dos países da África do Norte), além dos atos de violência contra estrangeiros em razão da sua religião.

Em Slotervaart, Hussein, 19 anos, um estudante em mecânica, não conheceu nem “Mo” Bouyeri nem a sua vítima. Mas, em contrapartida, este jovem rapaz de origem marroquina tem uma opinião formada a respeito de Geert Wilders: “uma barata”. O que diz o rapaz do fim que precisa ser reservado ao cineasta? “O desprezo, ou ainda…” Então, Hussein, rindo, faz um gesto com a mão, imitando a lâmina que corre de uma orelha para a outra.

No bairro onde ele mora, os prédios, de cor marrom, são de tamanho humano e os espaços verdes foram preservados. Mas estamos muito longe dos canais românticos e das casas nobres de arquitetura romana do centro da cidade. Falando num holandês desajeitado, Hussein resume as contradições e as frustrações de uma geração: da mesma forma que 71% dos jovens de origem marroquina, interrogados por uma vasta pesquisa pública a respeito das relações entre os estrangeiros – os “alóctones”, como dizem aqui – e os “autóctones”, ele se diz “antes feliz”. Ele gosta “até que bastante” do seu bairro. Mas ele denuncia a escola, que “causa tédio”, além da “condescendência” dos serviços de assistência social, a “hipocrisia” dos patrões que relutam a lhe dar um emprego, e ainda o esquema de vigilância constante que vem sendo mantido pela polícia desde os incidentes dos últimos meses.

Esses atos de violência, que ocorrem raramente no país, impressionaram os meios de comunicação. Elas motivaram as autoridades a agirem: 200 famílias, quase todas estrangeiras, deverão em breve deixar o seu alojamento social. Elas são motivos de queixas por causarem “constrangimentos”, segundo a expressão politicamente correta em vigor. O que, no caso, significa “barulho, sujeira e destruições”, conforme detalham os serviços municipais.

“A sociedade precisa reagir com prudência”, rebate Sadik Harchaoui. Este trintão nascido no Marrocos preside o Forum, um “instituto dedicado ao desenvolvimento multicultural”, baseado em Utrecht. Ao percorrer o país no momento em que o debate provocado por Geert Wilders está envenenando a vida pública, ele constatou com espanto sobretudo a moderação do “muçulmano médio”: “A atitude da maioria dos muçulmanos é tranqüila, patriótica, leal”.

Paul Scheffer, por sua vez, diz estar em busca “das modalidades ideais de convivência às quais aspira a maioria de todos os que vivem aqui”. Em todos os debates dos quais ele participou nos últimos oito anos, ele diz ter ficado impressionado com dois momentos excepcionais: o dia em que uma holandesa estava chorando porque não reconhecia mais o seu bairro, que passara a abrigar uma mesquita. E aquele em que uma marroquina se disse angustiada com a idéia de ver o seu filho “se perder numa sociedade tão esquisita”. Ele gostaria de colocar, um dia, estas duas mulheres frente a frente.

Adotando uma posição radicalmente oposta, Geert Wilders reclama a suspensão total da imigração, o fim da construção de mesquitas (já foram construídas cerca de 500 em todo o país) e o cancelamento das subvenções concedidas às escolas corânicas (atualmente existem 42). Ele quer também que os delinqüentes muçulmanos sejam condenados a perder a sua nacionalidade holandesa. “Ele é louco demais”, diz Hussein.

Fonte: Le Monde

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