Na República islâmica do presidente anti-sionista Mahmoud Ahmadinejad, vivem atualmente cerca de 30 mil judeus. Esta comunidade, que goza da liberdade de culto é até mesmo representada no Parlamento – por um único deputado.

Leituras e cantos se sucedem, formando uma leve cacofonia. Ouve-se a batida da porta da sinagoga, ao sabor das entradas e saídas das crianças. Do lado das mulheres, à esquerda, ouvem-se sussurros animadíssimos entre duas recitações murmuradas. Do lado dos homens, à direita, sorrisos e saudações com as mãos são trocados na menor oportunidade.

Então, chega o momento em que duas poltronas são instaladas uma na frente da outra, diante do estrado central. A assembléia inteira se mantém em silêncio. O bebê é colocado na posição sentada, sobre os joelhos de seu pai. Não longe deles, o “mohel” (que pratica a circuncisão) prepara os seus acessórios: uma faca, um frasco e pedaços de algodão. A multidão aglutina-se em volta deles. Armado de uma pequena faca de dois gumes, o mohel se debruça sobre o sexo do recém-nascido, enquanto um homem, em pé, enxuga a testa suada do jovem pai, que está ocupado a controlar as gesticulações do seu filho. Câmeras de vídeo e de telefones celulares são erguidas em direção à cena.

Alguns minutos mais tarde, em meio aos gritinhos estridentes das mulheres, o bebê aparece acima da platéia, carregado pelos braços erguidos do seu pai. Os cantos em hebraico ressoam sob o teto alto da sinagoga. Numa sala contígua, um aparador está repleto de ensopados, de saladas e de peixes grelhados. E o pai, em meio aos seus comensais, serve a quem quiser fartas doses de uísque e de vodca!

Discurso contra Israel

Esta cerimônia de circuncisão está sendo realizada na grande sinagoga Yusef Abad, em pleno centro de Teerã, a capital da anti-sionista República Islâmica do Irã. É difícil imaginar que este lugar, que mais se parece com um prédio administrativo, situado no coração de um bairro residencial, acolhe toda semana centenas de judeus de Teerã.

Afinal, a alguns quarteirões de lá, sobre os muros da capital, todos podem ler slogans arrasadores tais como “Down with Israel” (“Vamos acabar com Israel”). Disseminado no Irã desde a revolução islâmica de 1979, o discurso antiisraelense tem se mostrado ainda mais insistente agora que Mahmoud Ahmadinejad ascendeu à presidência do país. Em outubro de 2005, alguns meses depois da sua eleição, retomando declarações feitas pelo aiatolá Khomeini, Ahmadinejad conclamou a “riscar do mapa o Estado de Israel”, que ele comparou com um “tumor”.

Algumas semanas mais tarde, ele afirmou que os ocidentais “inventaram o mito do massacre dos judeus”. Então, o regime dos mulás organizou um concurso “internacional” de caricaturas sobre o tema da Shoah. Mais tarde, nos dias 11 e 12 de dezembro de 2006, o mundo inteiro assistiu, incrédulo, a uma enésima provocação da presidência iraniana: a organização em Teerã de uma conferência sobre o Holocausto, para a qual havia sido convidada a quase-totalidade dos negacionistas (pessoas que questionam a veracidade de fatos históricos como este) do planeta.

Durante dois dias, eles se dedicaram a questionar as provas do genocídio dos judeus pela Alemanha nazista e a fazer do sionismo o produto de uma gigantesca impostura. Desde então, não se passa um mês sequer sem que declarações de um gosto duvidoso venham ilustrar a nova estratégia iraniana de demonização dos judeus e de Israel.

Contudo, a comunidade judaica iraniana, que inclui cerca de 30 mil membros, é a mais importante do Oriente Médio – fora do Estado hebraico. Com mais de 2.700 anos de existência, ela é também a mais antiga diáspora judaica viva do mundo. Assim como acontece na maior parte dos países muçulmanos, ela compartilha com a comunidade cristã o estatuto de minoria protegida (“dhimmis”), reservado aos fiéis que acreditam no Livro sagrado.

Reconhecidos como integrantes de uma minoria religiosa, os judeus estão livres para praticarem seu culto nas suas sinagogas, para celebrarem seus casamentos, etc. Mas eles não gozam dos mesmos direitos que os muçulmanos (entre outros, os que dizem respeito aos direitos de herança) e não podem aceder a empregos nas altas esferas da administração pública ou no exército.

Açougues kosher

“Nós praticamos a nossa religião em toda serenidade e nada nos falta”, declara Farhad Aframian, o jovem redator-chefe da revista judaica “Ofogh-Bina”. “Nós temos cerca de vinte sinagogas em Teerã, além de escolas judaicas, de creches para as nossas crianças mais novas, de alguns açougues kosher (em conformidade com os preceitos judaicos), do nosso próprio hospital, etc. No interior das nossas sinagogas, as pessoas fazem o que querem. O governo não nos incomoda. Nós temos até mesmo o direito de consumir álcool para as necessidades das nossas cerimônias!”.

Nas ruas de Teerã, o visitante se depara muito raramente com judeus trajando um solidéu. A maior parte dentre eles o usa pouco antes de entrar na sinagoga. Além disso, as mulheres judias, mesmo se elas se diferenciam geralmente por meio de roupas sedosas e coloridas, respeitam estritamente o código relativo ao vestuário que é imposto pela lei islâmica, trajando o lenço e o “mantô” que esconde as formas femininas. Será este um sinal de desconfiança?

“Nós não queremos chamar as atenções sobre nós. Nós sabemos que a nossa discrição é uma condição para a nossa relativa liberdade”, responde Arash Abaie, 36 anos, um professor de religião judaica, dono de uma editora de livros em hebraico e leitor na sinagoga Yusef Abad. Em sua opinião, não há nenhuma contradição importante no fato de ser judeu em terra de Islã. “Não existem guetos ou bairros exclusivamente judeus no Irã. Nós estamos integrados e não sentimos hostilidade alguma por parte dos nossos compatriotas”, prossegue. “É importante saber também que nós, judeus do Irã, nos definimos em primeiro lugar e acima de tudo como iranianos”.

Contudo, é difícil imaginar, ainda assim, que as declarações negacionistas e as múltiplas provocações do presidente Ahmadinejad possam ter deixado os judeus iranianos indiferentes. Por intermédio do porta-voz Moris Motamed, o seu único representante no Parlamento, a comunidade judaica condenou oficialmente essas afirmações. Quando Mahmoud Ahmadinejad questionou a existência do Holocausto, dois anos atrás, o deputado organizou uma coletiva de imprensa para protestar publicamente contra essas declarações.

Na ocasião, ele afirmou que o Holocausto é um fato histórico verídico e que todo questionamento desta tragédia humana constitui um insulto para todos os judeus do mundo. Entretanto, para Moris Motamed, estas provocações não representam uma ameaça direta para com a comunidade. “Ahmadinejad nada mais faz do que retomar o discurso dos seus predecessores. Logo nos dias que se seguiram à revolução, Khomeini fez explicitamente a distinção entre os sionistas e os judeus, dizendo: ‘Nós respeitamos o judaísmo, mas nós desprezamos o sionismo’. Os slogans que nós ouvimos ainda atualmente têm como alvo Israel na sua condição de potência ocupante. Eles não são anti-semitas e não nos alvejam. Esta diferenciação é fundamental para nós”, clama Moris Motamed.

Ele não esconde que já lhe ocorreu em várias oportunidades de apoiar publicamente o povo palestino, quando ele considera isso necessário. Além disso, a Associação Judaica de Teerã, conforme ela mesma lembra no seu panfleto de apresentação, andou protestando regularmente contra “os crimes do regime israelense e as violações dos direitos humanos para com os palestinos”.

Distanciamento

Contudo, não é menos verdadeiro que havia evidentemente uma segunda intenção anti-semita no fato de organizar um concurso de caricaturas sobre o tema da Shoah ou na negação do Holocausto. “Nós não somos ingênuos. As provocações de Ahmadinejad visam a justificar a designação de Israel como inimigo externo. Isso lhe permite desviar as atenções das pessoas em relação aos problemas internos”, analisa o deputado, impassível. Esta luta contra o “regime sionista usurpador”, que constitui a pedra angular da política externa do país, é também uma maneira de atrair para si as simpatias dos países árabes da região, com o objetivo de fazer do Irã a maior potência do Oriente Médio.

As declarações presidenciais tampouco comovem a população além do normal. Moses, 51 anos, que trabalha como gerente de uma loja de têxteis prefere levar isso na brincadeira. “O que vocês querem? Deixem-no falar! Ele é um ditador. Ele é louco. Todo mundo sabe disso. Para nós, o que ele pode vir a dizer não muda nada”. “Já faz muitos anos que nós ouvimos os mesmos discursos; a gente nem presta mais atenção ao que eles dizem. Isso faz parte do cenário”, comenta Robin, um estudante de inglês. Este distanciamento pode ser explicado, segundo Arash, pelo pouco interesse que suscitam estas questões específicas. “Os judeus do Irã não costumam se meter a fazer política. Aqui, é muito difícil encontrar livros a respeito da história do Holocausto. De tal forma que até mesmo os judeus iranianos não têm uma grande consciência da Shoah. Esta tragédia não os diz respeito pessoalmente”. O Yom Ha Shoah, que relembra o Holocausto, é uma das poucas festas do calendário hebraico que não são celebradas no Irã.

A necessidade (ou a obrigação) que os seus membros têm de se integrarem juntos é uma característica desta comunidade. Em todo caso, este é um dos objetivos reivindicados pela Organização das Mulheres Judias, fundada já faz sessenta anos, que é a mais antiga associação judaica do Irã.

“Nós organizamos regularmente concertos, e ainda conferências abertas para todas as confissões, de modo a incentivar os intercâmbios com uma maioria de pessoas”, sublinha Marjan Yashayayi, que é membro ativa da organização e diretora da biblioteca da Associação Judaica de Teerã. “E nós temos muito orgulho por constatar que há muito mais universitários muçulmanos do que judeus que vêm consultar e emprestar os nossos livros sobre a religião e a cultura hebraicas”.

Da mesma forma, apesar da existência de escolas judaicas, muitas são as famílias que preferem inscrever os seus filhos nas escolas muçulmanas, de maneira que eles possam se integrar melhor e aprender as bases do Islã. Tanto mais que no concurso de entrada na universidade, cada aluno, qualquer que seja a sua confissão, deve passar uma prova de “ciências islâmicas”. Portanto, para não ficar a ver navios na hora de responder a uma pergunta sobre a data da morte do sétimo imame, mais vale ter freqüentado um colégio muçulmano.

Contudo, à medida que a conversa vai se estendendo, os judeus iranianos que nós encontramos se arriscam a se queixar. “Não é tão fácil assim ser judeu no Irã”, afirma Esther. “A minha irmã era chefe de equipe numa companhia farmacêutica de mais de 200 empregados. Ela estava prestes a se tornar gerente – todos os funcionários estavam de acordo com isso. No último momento, a diretoria lhe enviou uma nota explicando que se ela quisesse o cargo, ela teria de se converter à religião muçulmana. Uma vez que ela recusou, eles lhe pediram para se demitir”.

Vínculos econômicos

Daniela, 13 anos, freqüenta um colégio muçulmano. Ela explica, por sua vez, que de vez em quando, certos alunos a chamam de “inimiga” “É verdade que em certos casos, a nossa religião constitui um obstáculo. Mas o nosso destino é muito mais invejável que o dos bahaïs, por exemplo”, reconhece Marjan, fazendo referência aos 350 mil seguidores da fé bahaï, uma dissidência do Islã que surgiu no século 19. “A situação dos judeus do Irã não é pior que a de outras minorias”, confirma Parvaneh Vahidmanesh, que está preparando um doutorado e um livro sobre a história dos judeus no Irã.

“Uma minoria perseguida, os bahaïs são proibidos de celebrarem o seu culto. Os judeus, que geralmente são comerciantes, engenheiros ou médicos, gozam de mais poderes e de riquezas do que os cristãos e os zoroastristas. Eles têm a sorte de terem desenvolvido vínculos econômicos com os muçulmanos e de contarem com ajudas da diáspora americana e israelense”.

“Terminantemente proibido viajar para Israel”

Apesar da ruptura dos laços diplomáticos entre o Irã e Israel, os judeus iranianos mantêm algumas relações com o Estado hebraico. Sobretudo por intermédio da família. Muitos deles têm um primo, um tio, um irmão ou avôs que vivem em Tel-Aviv ou em Jerusalém, uma vez que por ocasião da fundação do Estado de Israel, em 1948, e depois durante a revolução de 1979, uma parte muito importante da comunidade judaica do Irã emigrou.

Kamran, que é pai de três filhos, é comerciante em Ispahan. Três das suas irmãs moram em Jerusalém. Ele vai visitá-las todos os anos. “Está escrito com grande destaque no nosso passaporte: ‘é terminantemente proibido viajar para Israel’. Portanto, para visitarmos a nossa família, nós precisamos passar por Chipre ou pela Turquia e, em Jerusalém, as autoridades emitem para nós um visto sobre uma folha destacada”, conta.

“As minhas irmãs ligam regularmente para mim e nós comunicamos muito por e-mail. Elas se preocupam em saber como as coisas andam para nós aqui, principalmente desde que Ahmadinejad está no poder. É verdade que durante o governo Khatami [o presidente anterior, reformista, que governou de 1997 a 2005], a gente se sentia mais à vontade, mais livre para se expressar. Mas eu as tranqüilizo: por enquanto, nós não temos muito do que nos queixar”.

Naquela noite de sexta-feira, às vésperas do sabá, toda a pequena família está reunida. Na sala de estar, o televisor está ligado e mostra o programa em persa da Rádio Israel, apresentado por iranianos de Jerusalém. O filho primogênito, Jonathan, 23 anos, é também um leitor assíduo do “Jerusalem Post” e do “Haaretz”, os quais ele consulta on-line para, segundo ele, se informar do que está acontecendo em Israel.

Da mesma forma que muitos jovens da sua idade, ele não quer se contentar com os jornais iranianos, que, na sua maioria, estão submetidos à censura. Um estudante de informática, Jonathan se sente bem integrado. Mais tarde, durante a noite, ele emitirá ainda assim algumas reservas: “Na qualidade de judeus, nós sabemos que profissionalmente encontraremos obstáculos. Nenhum de nós pode esperar fazer carreira no exército ou tornar-se um alto-funcionário. Nem pretender conseguir um cargo de advogado ou de magistrado. Então, uma vez que os veículos de comunicação, as editoras ou o setor da educação são completamente islamizados, a maioria dentre nós prefere se orientar rumo a setores mais neutros, tais como a engenharia, a medicina, a farmácia”.

Contudo, por nada neste mundo Jonathan partiria para viver em Israel (“Eu amo o meu país e eu teria medo demais dos atentados”), mas ele compreende que certos iranianos tenham esta vontade. No final de dezembro, um grupo de cerca de quarenta imigrantes judeus, auxiliados financeiramente pela Agência Judaica, desembarcou em Tel-Aviv diante das objetivas das câmeras e das máquinas fotográficas de dezenas de jornalistas. A Agência Judaica declarou então que estes homens e mulheres haviam deixado o seu país por causa de um anti-semitismo crescente. É difícil saber ao certo onde pára a verdade e onde começa a manipulação política, comenta Arash, que, entretanto, constata que eventos desta natureza, amplamente repercutidos pelos meios de comunicação iranianos, só fazem piorar a imagem dos judeus no Irã.

Em novembro de 2007, o “Guardian” havia dado conta de “um número crescente de emigrações de judeus do Irã para Israel, por causa das tensões crescentes entre os dois países”, e citava o exemplo de Benyamin, um jovem professor de hebraico que teria sido ameaçado de morte por ser suspeitado de espionagem a serviço de Israel.

Entre provocação e tolerância

O próprio Moris Motamed reconhece que, volta e meia, as tensões internacionais provocam confusões até mesmo na vida cotidiana dos judeus iranianos. Em Shiraz, no sul do país, durante o verão de 2006, em plena guerra entre Israel e o Hizbollah, organização esta apoiada por Teerã, uma loja mantida por judeus, por exemplo, foi alvo de um atentado com bomba, perpetrado por um grupo de muçulmanos extremistas.

Nesta cidade conhecida pelo seu conservadorismo, a desconfiança em relação aos jornalistas se faz sentir de uma maneira muito mais nítida do que em Teerã. Aliás, esta não foi a primeira vez que Shiraz tornou-se palco de incidentes graves. Nesta cidade, até hoje, a recordação do “caso dos treze judeus” está viva nas mentes. Em 2000, treze estudantes e professores de religião judeus haviam sido presos e encarcerados por “espionagem em proveito da entidade sionista”. Eles só vieram a ser libertados alguns anos mais tarde, como resultado de uma importante mobilização internacional.

Benyamin, que fora um destes treze prisioneiros, e que nós encontramos em Ispahan, hoje é rabino. Ele nos explica de antemão que não quer falar novamente deste acontecimento, preferindo se contentar em nos fazer visitar o banho das abluções da principal sinagoga de Ispahan. No que vem a ser mais um sintoma da ambigüidade da situação da comunidade judaica do Irã, entre provocações, humilhações e tolerância.

“Há séculos e mais séculos que no Irã, os judeus e os muçulmanos vivem juntos, respeitando uns aos outros. Se compararmos com o que aconteceu na história mundial é possível afirmar que nós estamos nos saindo até que bem”, resume Marjan. “No fundo deles mesmos, muitos judeus iranianos esperam representar um modelo para os palestinos e os israelenses. Nós somos provas vivas de que é possível viver em paz, apesar das diferenças. Seria legal se você pudesse colocar isso no seu artigo”, havia insistido Marjan. Dito e feito.

Atendendo ao seu pedido, ou por iniciativa nossa, nós alteramos os nomes de algumas das pessoas entrevistadas.

Fonte: Le Monde

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