Ariano Suassuna e Chico Science

Perdemos um grande; talvez um dos maiores brasileiros que já existiram. Ariano Suassuna foi único e pioneiro na defesa de uma arte erudita de raízes populares nordestinas. Poucos uniram de forma tão rica e brilhante o lirismo acadêmico com o rural, o refino literário com o rustico. Poucos enxergaram tão bem as nuances aristicas do sertanejo e traduziram para a literatura e o teatro a linguagem do nosso povo, nossa gente.

Ariano era mais que um erudito, era um purista. E como tal, tinha muito pouca paciência para a arte comercial, popularesca, a cultura de massa, todas essas resumidas no conceito da “globalização”, palavra que ele detestava; contra ela lutou ferrenhamente até o dia de sua morte.

Ariano sempre se declarou um “musico frustrado”; talvez por isso mesmo tenha tido ainda menos paciência para com os músicos brasileiros; poucos escaparam de sua critica afiada. A banda Calypso foi vitima de uma de suas hilárias criticas e nem Caetano Veloso e Cazuza escaparam. Mas o para o povo Pernambucano pelo menos, aquela querela que Ariano teve com Chico Science é a mais difícil de esquecer. Disputa que nunca aconteceu no campo pessoal; Ariano e Chico Science eram amigos e se respeitavam muito. Os dois estavam certos em seus esforços, os dois conquistaram vitorias, criaram espaços para a cultura pernambucana.

Chico Science e Ariano Suassuna beberam na mesma fonte, a da cultura popular, do nordestino comum, autêntico, rustico. Apenas tomaram rumos diferentes em seus processos de deglutição. Ariano defendia bravamente a eruditização da arte popular nordestina, com o movimento Armorial. Chico Science, o da fusão, do amalgamento de ritmos e culturas. Ariano falava à todas as gerações, mas encontrou na academia, nos intelectuais o reconhecimento mais pleno, aquele dos que viam em suas obras mais do que o riso fácil das grandes multidões. Chico Science, conseguiu alcançar justamente o segmento que não frequentava as aulas-espetaculo de Ariano e que não tinha hábito de ir ao teatro; os adolescentes que costumam rejeitar a tudo, mas que consumiram sem notar, os elementos da cultura popular que ele misturou às suas guitarras distorcidas. Science era a pura expressão da tal “globalização” que Ariano tanto desprezava!

Ariano que tanto defendia a arte do povo se esqueceu naquela ocasião, do inexorável processo de aculturação que faz parte do desenvolvimento de todas as culturas. Processo que o próprio movimento Armorial fez uso, ao empregar instrumentos como a rabeca, a flauta e a viola sertaneja, todos vindos da Europa e Asia, nenhum destes originariamente brasileiros. A guitarra elétrica que Ariano tanto combatia, na essência de nada difere da viola sertaneja ou da rabeca em suas origens; todos vem da mesma matriz Moura e Europeia. A globalização, na verdade sempre existiu, embora em gradações bem menores e menos intensas que a atual.

Chico Science nos deixou muito cedo, de forma extremamente prematura. Mas não precisou de muito tempo para deixar sua marca. De uma forma ou de outra, acabou escolhendo o lado mais forte, o da inexorável globalização. Ariano Suassuna, sempre ficou do lado mais fraco; sempre defendeu o homem comum, as minorias culturais; sempre defendeu justamente o inverso da globalização: o local, o rural, o bairrismo. Ariano nunca se ofendeu quando o comparavam a D. Quixote, o personagem de Cervantes, que como ele lutava contra o impossível, o invencível. E foi assim, sempre lutando contra os moinhos da mediocridade que Ariano Suassuna viveu seus 87 anos.

Tive vários encontros com Ariano Suassuna durante os mais de vinte anos em que morei no Recife. Fui aluno da Universidade Federal de Pernambuco e professor do Conservatório Pernambucano de musica, dois lugares que Ariano frequentava bastante. De todos os encontros que tive com Ariano Suassuna, o mais especial foi nos idos de 95, quando ele atuava como secretário da cultura de Pernambuco durante o governo Arraes. Estávamos no processo de conclusão do musical Jesus Sertanejo II e procurando angariar verba para financiar futuras apresentações e viagens. Conseguimos então uma audiência com ele, que nos recebeu com muita educação e gentileza. Ariano que era católico fervoroso, nos contou do tempo em que estudou no Colégio Americano Batista, das amizades que fez e sobre como aquele tempo foi importante em sua formação pessoal. Claro que terminamos não conseguindo um centavo, mas isso não teve a menor importância. Não sei se apenas por educação, mas ele nos disse que gostou do projeto e da qualidade do material e embora não tenha podido oferecer ajuda financeira, se comprometeu a fazer uma dedicatória quando o Cd estivesse pronto. Isso sem duvida teve valor muito maior que qualquer verba material.

A última vez que encontrei com Ariano, foi no aeroporto de Cumbica, numa das minhas vindas ao Brasil. Por coincidência nos encontramos quando ele voltava da Europa com o Quinteto Armorial. Ariano não gostava de viajar e por muitos e muitos anos, se orgulhava de nunca ter saído do Brasil. Mas, abriu algumas exceções para receber prêmios e divulgar seus projetos. Não sei se lembrou de mim, mas foi gentil e educado como sempre. Ficarei sempre com a lembrança , desse que foi um dos maiores intelectuais do Brasil. O grande defensor da cultura popular brasileira, o imortal Ariano Suassuna.

Um abraço,

Leon Neto

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