Uma das áreas mais fascinantes – e frequentemente mal compreendidas – em saúde mental é o Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI). Para muitos, o TDI é envolto em mistério; concepções populares podem obscurecer nossa real compreensão sobre o transtorno.
O enigma do TDI
TDI é uma condição psicológica onde um indivíduo possui duas ou mais identidades ou estados de personalidade distintos. Cada um deles tem sua própria maneira de perceber e interagir com o mundo.
Essas identidades têm histórias e comportamentos diferentes, ou estados de personalidade, surgem e se alternam no controle do comportamento da pessoa. Mais do que simples “mudanças de humor”, essas identidades possuem suas próprias memórias, preferências e formas de perceber o mundo ao redor, e a pessoa pode não ter lembrança do que uma das suas outras identidades fez.
A natureza humana é cativante e emprega estratégias de proteção singulares para escapar de cenários de tensão insustentáveis. Isso já despertava curiosidade, no término do século 19, ao icônico fundador da psicanálise, Sigmund Freud, que analisou fenômenos dissociativos no que ele denominava de histeria. O médico psiquiatra e também neurologista iniciou pesquisas sobre uma condição que, atualmente, é reconhecida como transtorno dissociativo de identidade.
Compreendendo os sintomas
Quem sofre com TDI pode apresentar uma série de sintomas, entre eles:
Mudanças de Identidade: Alternância entre personalidades distintas.
Amnésia: Falhas de memória sobre eventos cotidianos, informações pessoais ou episódios traumáticos.
Despersonalização: Sensação de estar desconectado de si mesmo, como se estivesse observando a própria vida de fora.
Distúrbios do Tempo: Percepção alterada do tempo, com sensação de perda ou distorção.
Comportamentos Impulsivos: Atitudes auto-destrutivas ou impulsos incontroláveis.
Um caso clínico conhecido: as três faces de Eve (Eva)
O caso das “Três Faces de Eve” é um dos casos clínicos mais famosos relacionados ao Transtorno Dissociativo de Identidade (anteriormente conhecido como Transtorno de Personalidade Múltipla). O caso foi documentado e popularizado através de um livro e posteriormente de um filme.
A paciente real por trás do pseudônimo “Eve” era Chris Sizemore. O livro e o filme detalham sua experiência com o transtorno e seu tratamento com os psiquiatras Dr. Thigpen e Dr. Cleckley.
Inicialmente, duas personalidades foram identificadas: Eve White, a personalidade primária, e Eve Black, uma personalidade mais impulsiva e despreocupada. Durante o curso do tratamento, uma terceira personalidade emergiu, chamada Jane.
A questão sobre por que uma terceira personalidade emergiu e por que ela foi chamada de “Jane” é intrigante.
Em 1977, como reação ao filme As Três Faces de Eva, ela publicou sua memória, Eu sou Eva, onde desvenda que possuía não meramente três, mas de fato 22 personalidades, e conta o real relato que a fez manifestar o transtorno dissociativo de identidade.
Mecanismo de Defesa: No contexto da psicanálise, pode-se argumentar que cada personalidade servia como um mecanismo de defesa para lidar com traumas e estresses diferentes. As personalidades dissociadas podem emergir como uma maneira de isolar memórias traumáticas ou comportamentos inaceitáveis, permitindo à personalidade original evitar o trauma. Jane pode ter emergido como uma personalidade mais equilibrada e adaptativa, uma vez que Eve White e Eve Black eram extremos opostos em termos de comportamento e emoção.
Nome “Jane”: A escolha do nome “Jane” não foi aleatória. Na verdade, foi escolhida pela própria paciente. Jane foi descrita como sendo mais madura, ponderada e equilibrada do que Eve White ou Eve Black. Ela representava uma “integração” das duas, e o nome “Jane” talvez fosse uma escolha que refletisse essa normalidade e equilíbrio. Não há uma explicação documentada específica sobre por que Chris Sizemore ou suas personalidades escolheram esse nome em particular, mas era distinto dos nomes “Eve White” e “Eve Black”, marcando sua diferenciação.
O caso das “Três Faces de Eve” desempenhou um papel significativo na conscientização sobre o TDI. No entanto, é fundamental reconhecer que cada caso de TDI é único. A experiência de Chris Sizemore, embora esclarecedora, é apenas um exemplo das muitas manifestações possíveis do transtorno.
Indivíduo ou Sistema?
A terminologia usada para descrever e se referir a pessoas com Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI) evoluiu com o tempo e com uma compreensão mais profunda do transtorno. O uso do termo “sistema” na comunidade TDI e entre certos profissionais de saúde mental reflete um esforço para abordar e reconhecer a complexidade da experiência vivida por esses indivíduos.
Aqui estão algumas razões para o uso do termo “sistema”:
Múltiplas Identidades: Em sua essência, o TDI envolve a presença de duas ou mais personalidades ou identidades distintas que assumem o controle do comportamento do indivíduo em diferentes momentos. Cada uma dessas identidades pode ter seus próprios nomes, histórias de vida, idades, gêneros, gostos e aversões. Chamar a pessoa pelo nome que foi dado pelos pais pode não reconhecer adequadamente todas as identidades presentes.
Reconhecimento da Coexistência: Ao se referir a um indivíduo com TDI como um “sistema”, reconhece-se que múltiplas identidades coexistem dentro de um único corpo e mente. Esse termo reconhece a complexidade e inter-relação dessas identidades.
Validação: Usar a terminologia “sistema” pode ser validador para muitos com TDI, já que respeita e reconhece a experiência de ter múltiplas identidades coabitando um único corpo.
Facilita a Comunicação: Em contextos terapêuticos ou de suporte, falar sobre o “sistema” de alguém pode ser uma maneira mais eficaz de se referir ao conjunto de personalidades, em vez de listar cada personalidade individualmente.
Empoderamento e Autonomia: Muitas pessoas com TDI tomam consciência e assumem o termo “sistema” por conta própria. Isso pode ser uma forma de reivindicar autonomia e controle sobre sua experiência e narrativa.
Conscientização e Educação: Usar um termo específico como “sistema” pode ajudar na educação e conscientização do público em geral e de profissionais sobre a natureza do TDI.
É importante notar que, embora muitos na comunidade TDI prefiram o termo “sistema”, nem todos os indivíduos com TDI podem usar ou se identificar com essa terminologia. Assim como com muitos aspectos da identidade e experiência pessoal, a terminologia preferida pode variar de pessoa para pessoa. Como sempre, é crucial abordar cada indivíduo com respeito e usar a terminologia com a qual eles se sentem mais confortáveis.
Dificuldades de diagnóstico
O TDI é notoriamente difícil de diagnosticar. As manifestações podem ser sutis e os sintomas podem se sobrepor a outras condições psiquiátricas. Muitas vezes, as pessoas com TDI podem ser inicialmente diagnosticadas com Depressão, Transtorno Bipolar ou Transtorno do Estresse Pós-traumático. Além disso, a amnésia associada ao TDI pode dificultar o relato preciso dos sintomas.
Compreendendo os gatilhos do Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI)
Muitas vezes, ao falarmos sobre saúde mental, nos deparamos com a palavra “gatilho”. Essa expressão, comum no universo psicológico, refere-se a um evento ou situação que pode desencadear ou exacerbar um sintoma ou condição. No contexto do Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI), entender esses gatilhos é fundamental para desvendar as complexidades desta condição.
O TDI, anteriormente conhecido como Transtorno de Personalidade Múltipla, é muitas vezes cercado de mistério e mal-entendidos. No entanto, uma coisa é clara para os profissionais de saúde mental: ele frequentemente se origina de experiências traumáticas, especialmente na infância.
Trauma na Infância: A maioria das pessoas diagnosticadas com TDI sofreu algum tipo de trauma durante a infância, geralmente antes dos 6 anos de idade. Estes traumas podem incluir abuso físico, emocional, sexual ou negligência. A teoria predominante é que, para lidar com tais experiências dolorosas e inaceitáveis, a criança desenvolve mecanismos de defesa, como a dissociação. Em sua forma mais extrema, essa dissociação pode levar a formação de identidades separadas, cada uma lidando com diferentes aspectos do trauma ou servindo para proteger a “personalidade original” do sofrimento.
Outros Eventos Traumáticos: Embora traumas na infância sejam o gatilho mais comum, outras experiências traumáticas vivenciadas posteriormente também podem contribuir para o desenvolvimento ou agravamento do TDI. Situações como acidentes graves, experiências de guerra, sequestros ou qualquer evento que cause um intenso estresse emocional podem potencialmente desencadear sintomas dissociativos.
Gatilhos Cotidianos: Uma vez estabelecido o TDI, diversos estímulos do dia a dia podem desencadear a troca entre as diferentes personalidades ou identidades. Estes estímulos, ou “gatilhos”, podem ser tão variados quanto um cheiro específico, um som, uma situação que remeta ao trauma original ou até mesmo uma data significativa.
É importante ressaltar que, assim como cada pessoa é única, os gatilhos para o TDI também variam de indivíduo para indivíduo. Além disso, muitos dos mecanismos exatos do transtorno ainda são objeto de pesquisa e debate no mundo científico.
Para quem sofre com o TDI, reconhecer e entender seus próprios gatilhos é uma etapa crucial do processo de recuperação. A terapia, especialmente aquela focada em trauma, pode ser um recurso valioso para ajudar a desvendar, confrontar e processar esses eventos e sensações desencadeadoras. Ao fazê-lo, muitos encontram um caminho para a integração e a cura.
O TDI é mais frequente no Hemisfério Norte do que no Hemisfério Sul?
O Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI) é um fenômeno complexo que interage com uma multiplicidade de fatores, incluindo biológicos, psicológicos, culturais e sociais. A prevalência variável do TDI entre diferentes regiões do mundo, incluindo a aparente diferença entre os hemisférios Norte e Sul, é uma questão interessante e motivo de debate e pesquisa.
Vamos considerar algumas possíveis razões para essa disparidade:
Diagnóstico e Reconhecimento: No hemisfério Norte, especialmente na América do Norte e Europa, há uma maior familiaridade e reconhecimento do TDI entre os profissionais de saúde mental. Isso pode levar a uma taxa de diagnóstico mais alta, simplesmente porque os profissionais estão mais atentos a isso. Em contraste, em muitas regiões do hemisfério Sul, o TDI pode ser menos reconhecido ou diagnosticado sob outro nome.
Diferenças Culturais: Em algumas culturas, as experiências que se alinham com a dissociação podem ser interpretadas de maneira diferente, talvez como possessões espirituais ou outros fenômenos culturais ou religiosos. Isso pode influenciar na maneira como as pessoas buscam tratamento e como são diagnosticadas.
Infelizmente, o TDI é frequentemente mal interpretado. Algumas culturas ou indivíduos podem acreditar que o transtorno seja resultado de possessão espiritual ou demônio. Outros podem pensar que os afetados estão simplesmente fingindo. Essas percepções erradas podem causar estigmatização e impedir que as pessoas busquem ajuda.
Formação e Educação em Psiquiatria: Em muitos países do hemisfério Norte, há um acesso mais amplo à formação e educação em psiquiatria e psicologia, o que pode resultar em uma maior capacidade de diagnosticar e tratar transtornos como o TDI.
Pesquisa e Publicidade: Países do hemisfério Norte, especialmente os EUA, têm sido centros de pesquisa sobre TDI. Casos famosos, filmes e programas de TV têm originado destas regiões, o que pode influenciar tanto o reconhecimento público quanto profissional do transtorno.
Diferenças nas Abordagens Terapêuticas: Existem debates contínuos sobre a influência das abordagens terapêuticas no surgimento e diagnóstico do TDI. Algumas críticas sugerem que certas formas de terapia, mais comuns no hemisfério Norte, podem influenciar a manifestação do TDI em pacientes predispostos.
Fatores Socioeconômicos: Estresse, trauma e adversidade, que são gatilhos conhecidos para o TDI, podem se manifestar de maneiras diferentes em diferentes contextos socioeconômicos e culturais.
É importante ressaltar que, enquanto algumas pesquisas sugerem que o TDI é mais frequentemente diagnosticado no hemisfério Norte, a real prevalência global do transtorno ainda é motivo de debate. Mais pesquisas são necessárias para entender completamente as nuances dessa distribuição geográfica.
Além disso, qualquer análise sobre a prevalência do TDI em diferentes regiões deve ser abordada com cautela e uma compreensão profunda das complexidades culturais, históricas e socioeconômicas em jogo.
Pode alguma pessoa fingir ter TDI?
Sim, ao longo da história da psiquiatria e psicologia, houve casos em que indivíduos fingiram ter vários transtornos, incluindo o Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI). Existem várias razões pelas quais alguém poderia simular sintomas de um transtorno mental:
Ganhos Secundários: Esses ganhos podem incluir a atenção dos outros, benefícios financeiros, como compensação por incapacidade, ou a evitação de consequências legais. Em alguns casos legais, por exemplo, alegar ter TDI poderia ser usado como uma tentativa de defesa por insanidade.
Busca de Atenção: Algumas pessoas podem fingir ter um transtorno como o TDI para receber atenção ou cuidado de profissionais de saúde, familiares ou da comunidade.
Autodecepção: Em alguns casos, um indivíduo pode começar a acreditar sinceramente que possui um transtorno, mesmo que os sintomas iniciais tenham sido simulados.
Influência da Mídia: A representação do TDI em filmes, séries e livros, muitas vezes sensacionalista, pode levar algumas pessoas a simular o transtorno porque se identificam com essa representação ou são influenciadas por ela.
Um dos desafios dos profissionais de saúde mental é fazer diagnósticos precisos e distinguir entre pacientes genuinamente afetados por um transtorno e aqueles que podem estar simulando ou exagerando sintomas. Por isso, é crucial um diagnóstico cuidadoso e aprofundado, usando várias ferramentas e métodos, incluindo entrevistas clínicas detalhadas, testes psicológicos e observação longitudinal.
No contexto do TDI, um diagnóstico preciso é particularmente desafiador devido à própria natureza do transtorno. Pessoas com TDI frequentemente têm histórias de trauma e abuso, e a revelação dessas experiências pode ser dolorosa e complicada. Ao mesmo tempo, o ceticismo excessivo por parte dos profissionais pode retraumatizar ou invalidar pacientes genuinamente afetados.
Por isso, é essencial abordar cada caso com uma mente aberta, compreensiva e crítica, buscando sempre o melhor interesse e bem-estar do paciente.
Psicóloga Helena Chiappetta
Referências
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